terça-feira, 30 de julho de 2013

Reconstrução

Este texto foi escrito sob encomenda, "carta apocalíptica", e publicado dia 21 de dezembro de 2012. Ele foi trabalhoso e gosto muito dele, então não resisti. Espero que agrade c:


Querido Sr. Smith,

tudo está desabando, e o motivo disso é o nome errado. Imagine só: um punhado de letras bastou para um resultado desastroso assim.

Agora estou na lanchonete da esquina, tomando um café e vendo o mundo acabar. Para ser honesta, a chuva de meteoros é um espetáculo muito bonito de se ver, e eu gostaria de um pouco de glacê no meu pedaço de bolo.

Nem tudo acontece como se espera – essa é a lição do dia.

Sabe, Smith, nesses momentos em que perdi e estou perdida é que sinto mais falta de meu pai, e de seus cigarros com cheiro de hortelã. Ele sorriria e diria algo bobo, que me faria sorrir também...

Se você existisse, meu amigo, eu poderia ser mais educada, e perguntar sobre seu dia. Ou poderia colocar meus pensamentos numa ordem menos ilógica. Mas meus dedos anseiam por meus rabiscos terapêuticos, e esses prédios que desmoronam sem mais nem menos estão me desconcentrando, e ainda nem falei sobre o nome.

O nome.

Sim, lá estava eu quando convocaram uma reunião com todos os funcionários da minha área. Caminhei com o coração palpitante, cantarolando Elephant Gun, recortando um caminho entre as costumeiras pessoas com olhos de peixe e vício em ar condicionado. Eu sabia que, agora no fim do ano, essa reunião só podia significar uma coisa: o anúncio da promoção.

A promoção que rendeu inúmeras horas extra de trabalho, a promoção que me fez dormir mal por tantas noites, a promoção que me obrigou a fazer relatórios novos para pessoas que não suporto. Minha razão nesses dois últimos anos. Essa promoção.

O homem de terno e com óculos pequenos demais estampou seu sorriso mais amarelo no rosto, e começou um típico discurso de fim de ano. A mesma voz que ordenava demissões em massa contava a todos que grande família somos. Não que ele fosse bom ou mau, ele era apenas um homem de negócios, acima dessas classificações, entende?

As palavras vazias flutuaram com o vento abafado, e depois de um suspense sutil, ele anunciou o novo detentor do cargo.

O nome. Que, definitivamente, não era o meu.

Puxei o ar. Puxei, com força, com vontade, mas ele não veio.

Então o prédio começou a tremer, ou talvez fossem minhas pernas instáveis não colaborando. Segurando as lágrimas, corri para a escada, e como num filme de ação os degraus começaram a se desfazer, e as paredes sussurravam meus piores pensamentos. Ouvi gritos, mas meu pânico era tão palpável que eu não sabia mais se eles vinham de meus sonhos quebrados ou das pessoas que abandonei no quarto andar.

Corri para baixo, mergulhando em memórias doloridas e passos apressados. Passei pela porta, e mesmo assim continuei correndo até perder o fôlego. Quando minhas bochechas adquiriram o tom de tomates, virei para trás, e de repente era tudo pó. O prédio, as pessoas lá de dentro, e as expectativas. Nada mais existia, Smith, nada.

Sentei na calçada tentando me acalmar, mas um dragão passou sobre a minha cabeça, cuspindo fogos de artifício de todas as cores. Os meteoros passaram a cair, numa melodia de assobios estridentes, e as pessoas só sabiam imitar gralhas, remexendo os braços e, bem, gralhando (essa palavra existe, sabia?).

Tentei entender o caos, o que não é tarefa fácil.

E, então, tudo ficou claro.

Hoje é dia 21 de dezembro!

Tanto falaram para mim do fim dos tempos, e eu apenas ignorei, achando que seria mais uma bobagem. Foi, na verdade, um alívio me dar conta dos fatos.

Sem maior peso em minha consciência, saltitei até a lanchonete, e resolvi comer bolo e tomar café; não haveria nada mais adorável a se fazer num momento desses. Além de corresponder-me com você, obviamente.

Nada mais de escritórios grandes. Aquilo é uma selva, Smith, você precisava ver. Nada mais de masoquismo em busca de um salário melhor. Não, não, nada disso. Apenas o maior espetáculo da Terra.

As casas e prédios estão desmoronando, e desfazendo-se majestosamente, como se fabricassem uma cortina sobrenatural de cimento e tijolos. Árvores, sempre elegantes, estão largando suas raízes e caminhando tranquilamente por aí, desfilando suas folhas delicadas. As estrelas estão todas piscando bem rápido, como luzes de Natal.

Pode ser uma tragédia, mas soa como algo ousado e apoteótico.

Você sabe, meu caro, que sempre fui uma pessoa racional. Mas aqui, enquanto estou sentada acabando com a cobertura de chocolate, restam três opções.

A primeira, mais interessante, é a de que os maias estavam certos, e sou apenas mais uma maluca buscando conforto no meio dessa bagunça toda.

A segunda, que seria decepcionante, é a de que eu esteja desmaiada ou dormindo em algum ponto dessa história, em casa hoje cedo ou no escritório alguns minutos atrás. De qualquer modo, depois de assistir a todos esses eventos, presenciando essa sinfonia tão singular e bela, não quero voltar às minhas preocupações cotidianas, tais como “não há leite desnatado no supermercado”. Esses dragões – que, certo, não sei de onde saíram – têm nos olhos o brilho de crianças que acabaram de ganhar uma segunda bola de sorvete. Seria uma pena se eles fossem apenas uma alucinação contente.

E a terceira – como você talvez já esteja suspeitando – é a de que eu esteja no meu apartamento, ignorando uma frustração pulsante ao escrever essa carta ao meu melhor amigo, enfeitando uma realidade cinza e transformando mais um fato tipicamente capitalista numa metáfora divertida.

Você sabia, Smith, que a palavra “apocalipse”, na verdade, deveria ser traduzida como “revelação”, e não “fim do mundo”? Só que, pensando melhor, revelar grandes segredos não seria um bom começo para o fim? O apelo de uma verdade (ou uma mentira) bem escondida é chocante, Smith.

Talvez pela sua existência tão somente na minha imaginação – nada de ossos, carne e sentimentos erráticos – você não compreenda a magia do mistério.

Em sua não-humanidade, Smith, preciso alertar-lhe sobre um dos conceitos de  efetivamente ser humano: carregar o apocalipse, seja lá qual for a conotação aplicada.

Assim, não haveria graça alguma em dar a você um número, e poupar todas as divagações que eu sempre quis provocar. O apocalipse está dentro de cada um de nós, meu caro, nunca duvide do poder disso.

E obrigada por suportar-me. Seu caráter etéreo sempre vale a pena: deixa-me partida em pedaços melhores.

Com amor,

Lola.

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