terça-feira, 23 de julho de 2013

O Erro da Professora


Texto escrito para uma Olimpíada Nacional de Química, na qual o tema era "As Cores e a Química". Consegui uma colocação entre os dez melhores textos, sendo ele publicado no site da USP. Segue o link a título de curiosidade: http://allchemy.iq.usp.br/

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Quando criança, sempre odiei desenhar. Meus traços erráticos não delineavam as ideias que passeavam por minha mente infantil, e isso me irritava. Já uma caixa de lápis de cor, isso sim era algo que eu adorava: misturar o verde de minhas árvores tortas e o azul de mares inventados. Ver as matizes que preenchem objetos inseridas numa grafite era mágico: permitia que meu sol fosse roxo, mesmo com os protestos da professora de que ele ficaria mais bonito em laranja ou amarelo.

Às vezes ela cismava de que não precisávamos colorir nada, dizendo que avaliaria só o que tínhamos representado. “As cores”, dizia ela, “não são tão importantes”. E naquela época, com meu respeito grande e infantil, nunca tive coragem de respondê-la, sendo sempre avaliada com notas medianas por meus rabiscos mal humorados. Hoje, porém, eu não ficaria calada diante de tal injustiça.

A fóvea dos olhos humanos possui cones – nossas células fotorreceptoras – que abrangem os mais variados tons, milhares e milhares deles. Sendo assim, por que não usar a criatividade ao invés de sempre colorir o céu com a mesma variação entediante de azul? As cores são tão importantes e presentes que acabam sendo esquecidas. Faz parte da triste e humana capacidade de acostumar-se com a beleza.

O próprio céu é colorido pelo fenômeno microscópico da dispersão de luz, que dependendo do horário faz as ondas de variados tamanhos – resultando em diferentes cores – bailarem e espalharem-se, formando obras de arte sobre nossas cabeças. E as estrelas, então? É seu tom que define a distância que as separa da Terra, e ainda sussurra aos cientistas os segredos da expansão do Universo. O arco-íris, formado logo após a chuva de fim de tarde, é luz branca que atravessa as pequeninas gotas d'água e é refratada, exibindo suas sete delicadas cores e fazendo com que todos os duendes corram para esconder seus potes de ouro.

A natureza, sempre sábia, conhece direitinho o potencial de pigmentos. O flavonol das flores amarelas atrai abelhas, enquanto a pelargonidina das vermelhas convida mariposas e borboletas. Os animais com homocromia têm a mesma tonalidade de seu ambiente natural, uma dádiva que lhes dá uma vantagem incrível na hora de caçar, ou não ser a caça. Já o sistema de herança genética quantitativa é o que define o tom de pele de cada pessoa, e que também foi capaz de definir a História.

Até hoje, pessoas que possuem os alelos dominantes da cor negra são alvo de preconceito mudo. E um homem, num sonho insano de conquistar o mundo, chegou a decidir que qualquer pessoa sem os alelos recessivos da pele alva e dos olhos claros deveria ser exterminada, por não integrar uma suposta “raça superior”. A variabilidade genética ainda pode produzir o racismo, ápice da estupidez humana. A mesma cor, sob diferentes contextos, carrega concepções dissonantes.

A cor vermelha da bandeira comunista, que proclamava a igualdade entre nações, foi usada também pela bandeira nazista, que planejava a aniquilação de povos inteiros. As tinturas naturais feitas pelos indígenas brasileiros, a base de urucum, açafrão e café são ainda hoje usadas em diversos rituais, sendo que cada tribo tem seus próprios códigos místicos para as tonalidades. Pinturas intrínsecas são feitas na pele, denotando objetivos e glórias. Não importando o direcionamento, é inegável a influência das cores sobre as mais diversas sociedades. E, com a globalização, cada vez mais unem-se e desconstroem-se referências e ideias.

Num primeiro momento, os cinemas apropriaram-se apenas do preto e do branco para encantar gerações, com o humor refinado de Charlie Chaplin e os passos graciosos de Fred Astaire. Hoje em dia, o poder das cores evoluiu tanto que permite enxergarmos pessoas que estão do outro lado do mundo, com uma definição que assombrosamente caminha para perto da realidade. Sim, porque as telas, por mais modernas que sejam, são apenas isso: matizes combinadas que formam imagens. A LCD trabalha com três fontes de cores primárias e uma luz branca para brincar com os tons, e a Plasma trabalha com um processo químico liberador de fótons, que colidem com o fósforo na frente de células que as faz brilhar, também a partir das três cores fundamentais. Portanto, as imagens que vemos cheias de detalhes são apenas pequenos pontinhos coreografados da maneira correta, numa dança que diariamente embala milhões de lugares pelo mundo.

Se as cores não influenciassem tanto nossa rotina, então as balas não seriam tão coloridas, e os chocolates não teriam embalagens tão chamativas. Um chiclete amarelo pode ter corante derivado do alcatrão de carvão (um ingrediente excêntrico, sejamos sinceros), e tudo para enlaçar o consumidor pelos olhos. E os tecidos, então? Desde a Antiguidade, as pessoas sempre fizeram questão de manchar suas roupas com as mais variadas tinturas, obtidas naturalmente de folhas de eucalipto ou mesmo cascas de nozes. Sempre houve a impressão de que as cores despertam sensações. Só que, com o desenvolvimento da ciência, conclusões concretas estão sendo fundamentadas.

Alex Born, um dos maiores nomes do mundo em neuromarketing, está relacionando numa de suas mais recentes pesquisas áreas do cérebro estimuladas por cada cor. O cinza estimula o putâmen, área responsável pela distribuição de dopamina, criando uma certa associação de neutralidade; já o roxo, ligado ao polo frontal, remete a sensatez ou mistério.

Antes de ressonâncias magnéticas existirem, muitas já eram as crenças e superstições. Ingleses usavam lenços vermelhos no pescoço para espantar espíritos que causavam resfriados, e na Irlanda o verde é considerado coloração azarada: tem ligação com as fadas, e por isso pode trazer má sorte. Mesmo o homem do século XXI não hesita em, no Ano Novo, vestir suas roupas brancas e desejar um pouco de paz. E assistir, com olhos encantados, a explosão dos fogos de artifício, que com sais de cálcio cria uma procissão de faíscas laranjas, mas que se tiver sais de estrôncio misturados aos sais de cobre cria um tom de violeta, capaz de tirar o fôlego.

Existem pessoas que chegam a sentir o gosto das cores e de notas musicais, por culpa de um distúrbio chamado de sinestesia. Outras, com daltonismo monocromático, só enxergam o mundo em preto e branco. E pessoas cegas, quando perguntam sobre a aparência de certa cor, costumam receber respostas cheias de textura, sons e sentimentos.

Aristóteles, Leonardo da Vinci, Isaac Newton e Goethe foram apenas alguns dos homens que dedicaram muito tempo de sua vida elaborando teorias sobre matizes e tons. E uma professora, numa distorção absurda de perspectiva, ousou desprezar a pequena garota em mim, com sua caixa preferida de lápis de cor e suas grafites que não eram grafites, mas uma mistura de barro, goma, cera e pigmentos coloridos.

Acho que todos deveriam ser obrigados a carregar canetas coloridas nos bolsos. E, frente a qualquer realidade incolor e insípida, preencher livremente vazios e desilusões com as cores que mais lhe agradassem. O que seria de nós, afinal, sem o laranja da chama aconchegante? Ou sem o branco das nuvens macias? Sem a esperança verde, a harmonia lilás ou o primeiro amor cor-de-rosa?

Cada criança do mundo deveria ter o direito de pintar seu próprio sol de roxo. Não por rebeldia, e muito menos por má vontade. Mas para expressar, com pureza e liberdade, o direito humano de sonhar. 

E colorir seus sonhos.

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