terça-feira, 23 de julho de 2013

Feitos de Carne


Inspirado na citação de Freud: “Somos feitos de carne, mas precisamos viver como se fôssemos de ferro”.

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Quando crianças, aprendemos que precisamos ser educados e sorrir sempre, mesmo quando a educação não é recíproca ou não há nada engraçado sendo dito. Não podemos sujar a roupa nova no quintal, nem fazer muito barulho, e entender que mamãe brinca mais tarde, papai conta uma história depois; há coisas mais importantes a serem feitas primeiro. A sobremesa é só depois de comer todos os legumes – inclusive a cenoura! -, e chorar nunca vai adiantar nada. Acompanhamos oscilações de humor e caprichos que não somos capazes de entender, porque somos “tão jovens”. Somos apenas argila, manuseada de acordo com o dia de sol ou a manhã de chuva.

Ficamos mais velhos, e temos a obrigação de crescer, matando a criança que insiste em emergir e não ser perfeitamente agradável. E então é necessário ajudar em casa, aceitar a vida e não ter contestações ouvidas: olha o seu tamanho! Deixar o tio hipertenso fartar-se de gorduras porque não é da nossa conta, acenar afirmativamente com a cabeça porque dá menos trabalho, engolir opiniões de quem tem uma casa maior ou um carro mais bonito. Crescer é ser sério, duro, não ter coração ou cérebro, mas uma boca que aprenda a se calar nas horas convenientes. Precisamos funcionar como elástico, aguentando exigências e críticas, falta de liberdade e incompreensão. Esticar, esticar, esticar; não estourar.

Quando adultos, então, mal podemos ficar doentes. Se reclamamos, precisamos nos conformar; quando conformados, precisamos encontrar nossa ambição. Podemos ter carreiras promissoras e conquistas complexas, mas caso não carreguemos um sorriso no rosto o tempo todo, nosso sucesso é fracassado: a felicidade é obrigatória. E nada de atrasos! Tempo é finito, tempo é dinheiro, respirar gasta tempo; permanecemos acordando sem fôlego. Não podemos pedir ajuda, precisamos ter certeza de tudo, mesmo do desconhecido, mesmo daquilo para o qual não fomos preparados, e enfrentar indiferentemente nossos piores medos. Muito tarde para perseguir um sonho, muito cedo para desistir da rotina insossa. Temos que ser ferro, resistente e inflexível.

E então ficamos velhos. Somos abandonados em pontos de ônibus por não pagarmos a passagem, e renunciados por filhos ocupados demais: tornamo-nos apenas inúteis. Nossa opinião não é mais válida, por ser muito antiquada; só temos autoridade sobre o passado, e mesmo este é constantemente arrancado de nós. Os degraus ficam muito grandes, e a paciência das pessoas ao redor fica muito pequena: essas grandezas inversamente proporcionais começam a nos pregar peças. Choramos a morte de pessoa que amamos, mas choramos baixinho para não incomodar ninguém. As dores, então, precisam ser escondidas, junto com o temor de sermos os próximos, e acabarmos amanhã em pó. Temos que ser o papel rasgado e sem objetivo, apenas empurrado pelo vento e pisado por estranhos altivos.

E passamos a vida assim, como robôs resignados, com nossos parafusos de sanidade e reações já programadas. Esquecemo-nos das expectativas, das liberdades e dos sonhos. Aceitamos as regras impostas e os programas de televisão, e ignoramos sentidos e objetivos; somos apenas telespectadores mudos e apáticos. Vivemos automaticamente, pretendendo o aço, quando temos um coração sinuoso e uma mente intrínseca.

Trajamos máscaras e ignoramos impulsos, seguindo uma sociedade da qual nos excluímos, mesmo integrando-a em seu sentido mais literal. As palavras vazias preenchem todos os cantos. Não importa o quanto ignoramos nossa natureza; ela clama por espaço, e clama por voz. Porque podemos vestir todas as ideias politicamente corretas, todas as posturas civilizadas e todos os conhecimentos que nos afastam da espontaneidade, mas continuamos sendo humanos.

Somos humanos. Não argila, ou elástico, ferro ou papel. Somos carne e sangue: em suas implicações mais enigmáticas, belas e primitivas.

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