Ela descia as escadas quando a viu, sentada em um dos
degraus, imóvel.
Conhecia a outra e nela se reconheceu: talvez fossem os
ombros largos, o hábito de sentar-se no chão sem pudores, ou a grandeza física
encolhida e estática. A outra olhava para algum lugar que não estava ali, na
distância física. Era um ponto entre andares não tão frequentados, e por isso
duas mulheres grandes sentadas não seriam obstáculo de mesma proporção. Ela
hesitou, pensando que não era problema seu (e não era), que talvez fosse
atrapalhar mais que ajudar (talvez fosse) e que estava atrasada (mentira desencorajadora).
E foi a desculpa do horário que a deteve.
Naquela noite, a ansiedade havia repousado em seu estômago
com a leveza de um elefante bêbado, e ela se pegara pensando que talvez, se não
tivesse a necessidade de dormir, suas tarefas seriam cumpridas de forma mais
satisfatória, num desejo secreto de ter um pouco mais de sua humanidade
arrebatada por um sistema frio e robótico. Mas ela era humana, apesar de tudo.
Se nem sempre a empatia dá frutos, ela deveria ao menos tentar. Então
sentou-se, ela e a outra, agora lado a lado.
A outra percebeu que estava acompanhada, mas mexeu a cabeça
devagar, dirigiu um pequeno olhar a ela e voltou ao ponto metafísico, toda
pálida e olhos mortos.
Tossidela.
- Tudo bem com você?
Palavras vãs de encontros inesperados, é sabido, mas o tom
empregado sugeria algo mais. O desinteresse usual havia sido substituído por
uma urgência delicada, dessas que permite a resposta e a fuga.
A outra nada disse, olhos se liquefazendo. Os segundos
seguiram seu desfile inexorável até que a outra, muito devagar, dobrou o braço
direito para a frente. Esticava e dobrava os dedos lentamente, ela observando que
o ar ao redor da outra parecia mais denso, água de um aquário invisível
impregnando seu microuniverso de lentidão. Era uma valsa estranha, essa de
unhas, cotovelo e pulso, num pequeno espetáculo tenso e inútil - redescoberta
de algo que não foi, e nunca seria...
- Dói.
Ela sobressaltou-se com o som mínguo e repentino, três
letras agonizantes proferido pela outra, que agora abaixava a cabeça, tremendo
microscopicamente.
Ela segurou o braço da outra com mínima força, quase
prendendo a respiração para que não se afastasse. Mas a outra mal
percebia, imersa em si.
- Onde dói?
A outra fitou-a num rompante, e esse seria o único contato
visual que teriam naquela tarde.
- Viver. Dói.
A frase foi entrecortada pela respiração da outra, puxando o
ar para chorar, o colo avermelhado e as lágrimas grossas sacudindo-a. Tudo num
silêncio violento, o pranto mudo que rasga de dentro pra fora.
Ela assustada passou a mão pelos ombros da outra, sempre ela
e sempre a outra, duas entidades separadas por uma distância tão invisível
quanto arrasadora.
E então, nesse segundo antes de levantar-se desconcertada
por tamanha dor inalcançável, ela percebeu algo espantoso. Tão espantoso que
por aquele momento teria gasto todas as suas economias para guardá-lo consigo,
num refúgio mais confiável que a memória. Mas não havia nada a ser feito porque
as melhores fotos só acontecem havendo o fotógrafo sábio, o instante irrepetível
e a câmera em mãos. Ela não tinha nada disso, e a outra destilava seu paradoxo
por pouco tempo: mesmo estando na presença d’ela, a outra estava sozinha. Deixada para trás em si mesma, não havia nada a ser feito, e ela precisou abandoná-la
mais uma vez, transbordada. Era humanidade demais.