Ah, minha querida, eu gostaria de não ter chorado tanto. |
Não sei se é este
pensamento que me desperta, ou se é apenas o primeiro a emergir do sono
frágil: hoje é dia das crianças.
A constatação me
desconcerta, atravessando-me como um raio, saindo de meu estômago e indo até a
ponta dos dedos dos pés. Não é o fato em si que espanta, mas sua natureza
banal. É ela quem, do pé da cama, encara-me com solenidade. Minha idade
agarra-se a essa percepção, e logo meu caos particular está emaranhado junto
aos cobertores velhos.
O dia doze de outubro era
um dos mais aguardados do ano. Lembro-me do pacto sagrado que eu e meu irmão
fazíamos: o primeiro a despertar chamava o outro, e lá íamos nós dois pular na
cama de nossos pais. Os livros e brinquedos, com suas cores brilhantes, eram
contrastados pelas negociações envolvendo etiquetas de preços
monocromáticos. Era o dia da música de papéis se rasgando, chocolates mordidos
e pedidos realizados. Um dia aguardado com ansiedade.
Desço da cama inquieta. O
silêncio da casa não será quebrado por pés descalços correndo ou pelo café da
manhã excepcionalmente antecipado. Agora, enquanto abro a janela, o sol opaco é
de uma data qualquer, esquecida, não mais carregando qualquer tipo de emoção aguda.
Em que momento o encanto
escapara? Teria ele sido arrancado pelo tempo, teria sido expulso pelo trágico
ímpeto de crescer? Quando aquela ansiedade se fora, sem dizer adeus?
A inércia quase me conduz
até a água gelada da pia; o espelho na parede, antes mero acessório inofensivo,
me detém.
Ele sorri para mim – não
um traço simpático, mas quase um esgar violento. Ele ri de mim, destacando impiedosamente o par de olheiras e as
perguntas tolas.
Confesso, derrotada, que
a ansiedade existe, sim; continua lá, parte de minha alma, estampada em meus olhos.
Ansiedade, entretanto, que não será alegremente desfeita dali a duas caixas de
presente.
Não me reconheço.
Sou a mesma de ontem, e
de anteontem, mas a conexão entre meu passado e meu reflexo é tênue.
Os dedos longos, os olhos
curiosos e o formato do cabelo são os mesmos; o esmalte vermelho, o lápis de
olho borrado e a tinta, não.
A sobreposição é visível.
A garotinha que fui – fantasma esguio – esforça-se para se esconder, mas sinto
que ela está ali, em algum lugar. Soa até arrogante esquecer o mérito
(e a culpa) que a menina teve sobre a (suposta) mulher.
Tento ser menos
estrangeira nessa melancolia cronológica, menos cruel comigo mesma. Afinal, ainda sou uma sonhadora, sobrevivente da realidade esmagadora. Se estou sendo dissolvida de dentro para fora, é
porque antes meus sonhos me ajudavam a dormir, e agora são eles que me mantém
acordada noite adentro - rabiscando papéis que talvez ninguém leia, contando
estrelas que ouso fingir que enxergo, tentando alcançar o futuro indistinto.
Não sei se a criança que fui teria orgulho do que sou hoje; resta-me o risco de acreditar que,
enquanto esse enigma tiver importância, estarei no caminho certo.
Afasto-me, um pouco mais leve. A esperança pífia e insistente de um gesto quebrado: o fantasma sorri.
Afasto-me, um pouco mais leve. A esperança pífia e insistente de um gesto quebrado: o fantasma sorri.