domingo, 12 de outubro de 2014

O fantasma sorri



Ah, minha querida, eu gostaria de não ter chorado tanto.


Não sei se é este pensamento que me desperta, ou se é apenas o primeiro a emergir do sono frágil: hoje é dia das crianças.

A constatação me desconcerta, atravessando-me como um raio, saindo de meu estômago e indo até a ponta dos dedos dos pés. Não é o fato em si que espanta, mas sua natureza banal. É ela quem, do pé da cama, encara-me com solenidade. Minha idade agarra-se a essa percepção, e logo meu caos particular está emaranhado junto aos cobertores velhos.

O dia doze de outubro era um dos mais aguardados do ano. Lembro-me do pacto sagrado que eu e meu irmão fazíamos: o primeiro a despertar chamava o outro, e lá íamos nós dois pular na cama de nossos pais. Os livros e brinquedos, com suas cores brilhantes, eram contrastados pelas negociações envolvendo etiquetas de preços monocromáticos. Era o dia da música de papéis se rasgando, chocolates mordidos e pedidos realizados. Um dia aguardado com ansiedade.

Desço da cama inquieta. O silêncio da casa não será quebrado por pés descalços correndo ou pelo café da manhã excepcionalmente antecipado. Agora, enquanto abro a janela, o sol opaco é de uma data qualquer, esquecida, não mais carregando qualquer tipo de emoção aguda.

Em que momento o encanto escapara? Teria ele sido arrancado pelo tempo, teria sido expulso pelo trágico ímpeto de crescer? Quando aquela ansiedade se fora, sem dizer adeus?

A inércia quase me conduz até a água gelada da pia; o espelho na parede, antes mero acessório inofensivo, me detém.

Ele sorri para mim – não um traço simpático, mas quase um esgar violento. Ele ri de mim, destacando impiedosamente o par de olheiras e as perguntas tolas.

Confesso, derrotada, que a ansiedade existe, sim; continua lá, parte de minha alma, estampada em meus olhos. Ansiedade, entretanto, que não será alegremente desfeita dali a duas caixas de presente.

Não me reconheço.

Sou a mesma de ontem, e de anteontem, mas a conexão entre meu passado e meu reflexo é tênue.

Os dedos longos, os olhos curiosos e o formato do cabelo são os mesmos; o esmalte vermelho, o lápis de olho borrado e a tinta, não.

A sobreposição é visível. A garotinha que fui – fantasma esguio – esforça-se para se esconder, mas sinto que ela está ali, em algum lugar. Soa até arrogante esquecer o mérito (e a culpa) que a menina teve sobre a (suposta) mulher.

Tento ser menos estrangeira nessa melancolia cronológica, menos cruel comigo mesma. Afinal, ainda sou uma sonhadora, sobrevivente da realidade esmagadora. Se estou sendo dissolvida de dentro para fora, é porque antes meus sonhos me ajudavam a dormir, e agora são eles que me mantém acordada noite adentro - rabiscando papéis que talvez ninguém leia, contando estrelas que ouso fingir que enxergo, tentando alcançar o futuro indistinto.

Não sei se a criança que fui teria orgulho do que sou hoje; resta-me o risco de acreditar que, enquanto esse enigma tiver importância, estarei no caminho certo.

Afasto-me, um pouco mais leve. A esperança pífia e insistente de um gesto quebrado: o fantasma sorri.