terça-feira, 30 de julho de 2013

Reconstrução

Este texto foi escrito sob encomenda, "carta apocalíptica", e publicado dia 21 de dezembro de 2012. Ele foi trabalhoso e gosto muito dele, então não resisti. Espero que agrade c:


Querido Sr. Smith,

tudo está desabando, e o motivo disso é o nome errado. Imagine só: um punhado de letras bastou para um resultado desastroso assim.

Agora estou na lanchonete da esquina, tomando um café e vendo o mundo acabar. Para ser honesta, a chuva de meteoros é um espetáculo muito bonito de se ver, e eu gostaria de um pouco de glacê no meu pedaço de bolo.

Nem tudo acontece como se espera – essa é a lição do dia.

Sabe, Smith, nesses momentos em que perdi e estou perdida é que sinto mais falta de meu pai, e de seus cigarros com cheiro de hortelã. Ele sorriria e diria algo bobo, que me faria sorrir também...

Se você existisse, meu amigo, eu poderia ser mais educada, e perguntar sobre seu dia. Ou poderia colocar meus pensamentos numa ordem menos ilógica. Mas meus dedos anseiam por meus rabiscos terapêuticos, e esses prédios que desmoronam sem mais nem menos estão me desconcentrando, e ainda nem falei sobre o nome.

O nome.

Sim, lá estava eu quando convocaram uma reunião com todos os funcionários da minha área. Caminhei com o coração palpitante, cantarolando Elephant Gun, recortando um caminho entre as costumeiras pessoas com olhos de peixe e vício em ar condicionado. Eu sabia que, agora no fim do ano, essa reunião só podia significar uma coisa: o anúncio da promoção.

A promoção que rendeu inúmeras horas extra de trabalho, a promoção que me fez dormir mal por tantas noites, a promoção que me obrigou a fazer relatórios novos para pessoas que não suporto. Minha razão nesses dois últimos anos. Essa promoção.

O homem de terno e com óculos pequenos demais estampou seu sorriso mais amarelo no rosto, e começou um típico discurso de fim de ano. A mesma voz que ordenava demissões em massa contava a todos que grande família somos. Não que ele fosse bom ou mau, ele era apenas um homem de negócios, acima dessas classificações, entende?

As palavras vazias flutuaram com o vento abafado, e depois de um suspense sutil, ele anunciou o novo detentor do cargo.

O nome. Que, definitivamente, não era o meu.

Puxei o ar. Puxei, com força, com vontade, mas ele não veio.

Então o prédio começou a tremer, ou talvez fossem minhas pernas instáveis não colaborando. Segurando as lágrimas, corri para a escada, e como num filme de ação os degraus começaram a se desfazer, e as paredes sussurravam meus piores pensamentos. Ouvi gritos, mas meu pânico era tão palpável que eu não sabia mais se eles vinham de meus sonhos quebrados ou das pessoas que abandonei no quarto andar.

Corri para baixo, mergulhando em memórias doloridas e passos apressados. Passei pela porta, e mesmo assim continuei correndo até perder o fôlego. Quando minhas bochechas adquiriram o tom de tomates, virei para trás, e de repente era tudo pó. O prédio, as pessoas lá de dentro, e as expectativas. Nada mais existia, Smith, nada.

Sentei na calçada tentando me acalmar, mas um dragão passou sobre a minha cabeça, cuspindo fogos de artifício de todas as cores. Os meteoros passaram a cair, numa melodia de assobios estridentes, e as pessoas só sabiam imitar gralhas, remexendo os braços e, bem, gralhando (essa palavra existe, sabia?).

Tentei entender o caos, o que não é tarefa fácil.

E, então, tudo ficou claro.

Hoje é dia 21 de dezembro!

Tanto falaram para mim do fim dos tempos, e eu apenas ignorei, achando que seria mais uma bobagem. Foi, na verdade, um alívio me dar conta dos fatos.

Sem maior peso em minha consciência, saltitei até a lanchonete, e resolvi comer bolo e tomar café; não haveria nada mais adorável a se fazer num momento desses. Além de corresponder-me com você, obviamente.

Nada mais de escritórios grandes. Aquilo é uma selva, Smith, você precisava ver. Nada mais de masoquismo em busca de um salário melhor. Não, não, nada disso. Apenas o maior espetáculo da Terra.

As casas e prédios estão desmoronando, e desfazendo-se majestosamente, como se fabricassem uma cortina sobrenatural de cimento e tijolos. Árvores, sempre elegantes, estão largando suas raízes e caminhando tranquilamente por aí, desfilando suas folhas delicadas. As estrelas estão todas piscando bem rápido, como luzes de Natal.

Pode ser uma tragédia, mas soa como algo ousado e apoteótico.

Você sabe, meu caro, que sempre fui uma pessoa racional. Mas aqui, enquanto estou sentada acabando com a cobertura de chocolate, restam três opções.

A primeira, mais interessante, é a de que os maias estavam certos, e sou apenas mais uma maluca buscando conforto no meio dessa bagunça toda.

A segunda, que seria decepcionante, é a de que eu esteja desmaiada ou dormindo em algum ponto dessa história, em casa hoje cedo ou no escritório alguns minutos atrás. De qualquer modo, depois de assistir a todos esses eventos, presenciando essa sinfonia tão singular e bela, não quero voltar às minhas preocupações cotidianas, tais como “não há leite desnatado no supermercado”. Esses dragões – que, certo, não sei de onde saíram – têm nos olhos o brilho de crianças que acabaram de ganhar uma segunda bola de sorvete. Seria uma pena se eles fossem apenas uma alucinação contente.

E a terceira – como você talvez já esteja suspeitando – é a de que eu esteja no meu apartamento, ignorando uma frustração pulsante ao escrever essa carta ao meu melhor amigo, enfeitando uma realidade cinza e transformando mais um fato tipicamente capitalista numa metáfora divertida.

Você sabia, Smith, que a palavra “apocalipse”, na verdade, deveria ser traduzida como “revelação”, e não “fim do mundo”? Só que, pensando melhor, revelar grandes segredos não seria um bom começo para o fim? O apelo de uma verdade (ou uma mentira) bem escondida é chocante, Smith.

Talvez pela sua existência tão somente na minha imaginação – nada de ossos, carne e sentimentos erráticos – você não compreenda a magia do mistério.

Em sua não-humanidade, Smith, preciso alertar-lhe sobre um dos conceitos de  efetivamente ser humano: carregar o apocalipse, seja lá qual for a conotação aplicada.

Assim, não haveria graça alguma em dar a você um número, e poupar todas as divagações que eu sempre quis provocar. O apocalipse está dentro de cada um de nós, meu caro, nunca duvide do poder disso.

E obrigada por suportar-me. Seu caráter etéreo sempre vale a pena: deixa-me partida em pedaços melhores.

Com amor,

Lola.

sexta-feira, 26 de julho de 2013

Açúcar

Pequeno esclarecimento: gosto muito de Lola. Ela não sou, e tem olhos violeta.

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Querido Senhor Smith,

lembra-se do dia em que eu tanto pensava em amizade, amor e outros temas certamente aborrecedores? E que não conseguia conter a inquietação principalmente quando aquela palavrinha tão infeliz, “felicidade”, passeava pelos cantos de meus devaneios recorrentes?

Pois é. Acho que depois de tantas caretas e conclusões precipitadas, posso ter conseguido algo.

Sabe, foram muitas noites sem dormir direito e muitas voltas de bicicleta, todo aquele drama absolutamente necessário (inclua seu velho sorriso irônico aqui), para que eu conseguisse vislumbrar o vaga-lume de ideia.

O problema é que perdi muito tempo vagando pelos lugares errados. Procurando alegrias infinitas e soluções definitivas num mundo instável, e adoravelmente errático. Caçando as jujubas vermelhas do pacote, como se limão não estivesse à altura...

Enfim, lá estava eu, numa noite qualquer, conversando com um suposto amigo, um daqueles que atrai as palavras mais mirabolantes sem qualquer motivo aparente. Ele resmungava (como era de seu costume), e eu tentava remendar seus pedaços confusos e impacientes.

- Às vezes a felicidade não é tão simples.

- Isso mesmo – ele completou – acho que ela deve estar nos outros.

Nesse momento, com um estalido, me dei conta: ele estava absolutamente errado!

Quero dizer, podemos procurar esse contentamento em amigos, parentes e outras projeções de perfeição. Mas no fim, com toda a sinceridade, a tal felicidade está dentro de nós. Sempre esteve.

Ah, meu caro, minhas bochechas às vezes doem porque ultimamente tenho feito um esforço danado para sorrir e não trilhar o mau humor imediato. Ou pelo menos engolir todo o veneno possível, antes de começar a piorar meus problemas.

Estou começando a entender - de verdade - que não posso mudar tudo. Gostaria de arrancar mais sorrisos e encerrar mais conflitos antigos, mas isso é algo fora de alcance. Quem me dera arranjar mudanças profundas e rendições mágicas. Parar as brigas estúpidas e dizer o que (talvez, e só talvez) fizesse diferença.

Agora, quando os gritos começam a bloquear até o som da minha respiração, ponho os fones de ouvido, e ouço música o mais alto possível. Sorrio com as lembranças, assovio as partes que não sei e canto bem baixinho o que já decorei. Retiro-me da guerra que não me pertence.

Quando muito sozinha, pego a bicicleta e saio, só para sentir o vento do inverno bagunçar ainda mais meu cabelo. E para ver as borboletas – borboletas são tão dóceis e agradáveis. Um pequenino presente, nessa paisagem urbana e apressada.

É muito difícil ver alguns desabamentos a minha volta. Observar pessoas se arruinando, sempre presas aos mesmos vícios.

Mas é assim mesmo, não é? Todos. Sempre acham que são especiais por algum motivo. Bonitos ao seu modo, mais espertos do que se espera, corretos em sua moralidade torta...

Ilusões. No final todos humanos, errando e agarrando o egoísmo quando conveniente. A maldade pura e declarada, Senhor Smith, permanece mesmo nos filmes e nas novelas que assisto de vez em quando: crueldade estereotipada e rasa, sem passados e segredos, presa a motivos bobos e falas sem sabor.

Agora eu conto um segredo: não está sendo nada fácil essa minha revolução, Smith. Parece que quanto mais tempo passa, mais nítidos ficam os problemas, e mais me envolvo no emaranhado de desejos, sonhos e decepções. É muito feio, mas em alguns dias sinto certa arrogância. Noutros tenho vontade de quebrar o espelho pra não encarar mais meu reflexo, tão pobre, coitado.

Ando comendo mais do que deveria, já falaram com toda a (in)discrição possível que estou engordando. E também estou mais quieta, e a palavra pode ser difícil. É. Outro dia me chamaram de fraca. Não gostei muito do adjetivo, mas talvez seja isso. A desistência pacífica, bandeirinhas brancas e piano para acompanhar, uma marcha fúnebre e alguma canção capitalista cliché.

Pode ser raciocínio de gente enganada, mas nesse caso, se estou mesmo enganada não posso, sabe como é, ter conhecimento disso. Minha pseudo-verdade é: estou mais completa. Percebi que é muito melhor ganhar um “obrigado” de alguém mergulhado em amargura do que tentar (em vão) resolver  problema alheios, num exercício mental.

Não sou nem um pouco perfeita, isso é fácil de enxergar. Alguns não parecem estar gostando muito dessa minha relativa tranquilidade.

Mas eu consegui rir sozinha, tocando violão e comendo chocolate. Consegui dançar sem música, meu amigo. E gargalhei quando percebi que já estava saindo de casa sem as chaves.

Poderia ser mais divertido discutir isso se você existisse, cá entre nós. Meu pai provavelmente vai achar essa carta na gaveta, e rir de mim enquanto fuma seu cigarro com cheiro de hortelã, dizendo que estou enlouquecendo.

Não me importarei. Não preciso ouvi-lo, só dispersar esse cansaço da rotina.

Pode ser questão de comodidade e loucura, Senhor Smith. Não estou me importando muito.

Declarar-me feliz talvez seja um pouquinho de presunção, e um pouquinho de desprezo também por coisas que realmente preocupam. Certo, pode chamar de coisonas, se preferir assim.

Mas chega de complicar o complicado, certo? Certo.

Felicidade deve ser algo próximo disso, de apreciar o possível e conviver com o impossível. E lá venho eu de novo com minha filosofia barata. Muito delicado da sua parte não existir, e não contestar minhas linhas sinuosas e afetadas.

Obrigada por isso.

Com amor,
Lola.

P.s.: não sei por que, mas acho que esta carta ficou com gosto de açúcar...
P.s.²: talvez seja culpa do chá que eu estava bebendo. Deixemos essa discussão para um outro dia, sim, sim.

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terça-feira, 23 de julho de 2013

Alvorecer


Reciclagem de uma redação para a escola. Um pouco supersticioso, simples e leve: gotas de água salgada, soa assim agora.

*

O homem tinha olhos tão cinzentos quanto a penumbra pela qual gostava de se locomover ao cair da noite, silencioso. Era um semeador de ventos.

Morava na maior fazenda de toda a região. E, ao crepúsculo, acendia seu cachimbo rústico e abria um sorriso manipulador. Com passos cuidadosos andava sem ser visto, para quebrar ferramentas, ceifar a vida de um animal, destruir plantações. Um trabalho sutil feito para parecer estrondoso, para ser encontrado pelo proprietário no dia seguinte.

Era um disseminador de sussurros. No dia seguinte lá estava, junto aos admiradores da pequena tragédia. Sempre presente pra semear a ideia, o suposto autor, a suposta ordem dos fatos, a suposta intenção. Plantar a maldade e criar vendavais, atordoando e confundindo.

Queimou armazéns, abriu cercas, quebrou tratores. Fundiu-se a sombra e brincou com o lado mais obscuro da desconfiança humana. Aprimorando-se conseguia destruir cada vez mais trabalhos.

Porém o revés chegou. Algumas famílias, quando pensavam só poder colher o ódio, desejaram pegar as sobras e aproveitar um fiapo de esperança. Tecer uma linha que unisse a todos, será que acordando um pouco mais cedo conseguimos nos resolver?

Alguns aprenderam até a cantar enquanto trabalhavam. E após os incidentes estranhos, antes celebrados por uns e lastimados por outros, agora tentavam se ajudar. Estender uma mão, sorrir quando chorar parecia a única alternativa.

E o semeador de intrigas ficou intrigado. Como semear a discórdia se agora só eram plantadas novas canções irritantes?

E no grande dia da colheita uma tempestade atingiu a fazenda do semeador de tristeza. Como num passe de mágica sumiram os pomares, sumiram os pastos, os equipamentos, o semeador de ventos. Onde estava? Como sumira com tudo do dia para a noite?

Sua terra ficou tão cinza como a cor dos seus olhos. Ninguém nunca mais atreveu-se a plantar por ali. E num raio de sol qualquer outro homem sorria, com olhos tão azuis quanto a calma de sua alma. Quando será que aqueles humanos teimosos aprenderiam que quem semeia ventos colhe tempestade? “Semeiem a solidariedade”, ele sorriu antes de sumir com a brisa, “e aprendam a colher o amor”.

O Erro da Professora


Texto escrito para uma Olimpíada Nacional de Química, na qual o tema era "As Cores e a Química". Consegui uma colocação entre os dez melhores textos, sendo ele publicado no site da USP. Segue o link a título de curiosidade: http://allchemy.iq.usp.br/

*

Quando criança, sempre odiei desenhar. Meus traços erráticos não delineavam as ideias que passeavam por minha mente infantil, e isso me irritava. Já uma caixa de lápis de cor, isso sim era algo que eu adorava: misturar o verde de minhas árvores tortas e o azul de mares inventados. Ver as matizes que preenchem objetos inseridas numa grafite era mágico: permitia que meu sol fosse roxo, mesmo com os protestos da professora de que ele ficaria mais bonito em laranja ou amarelo.

Às vezes ela cismava de que não precisávamos colorir nada, dizendo que avaliaria só o que tínhamos representado. “As cores”, dizia ela, “não são tão importantes”. E naquela época, com meu respeito grande e infantil, nunca tive coragem de respondê-la, sendo sempre avaliada com notas medianas por meus rabiscos mal humorados. Hoje, porém, eu não ficaria calada diante de tal injustiça.

A fóvea dos olhos humanos possui cones – nossas células fotorreceptoras – que abrangem os mais variados tons, milhares e milhares deles. Sendo assim, por que não usar a criatividade ao invés de sempre colorir o céu com a mesma variação entediante de azul? As cores são tão importantes e presentes que acabam sendo esquecidas. Faz parte da triste e humana capacidade de acostumar-se com a beleza.

O próprio céu é colorido pelo fenômeno microscópico da dispersão de luz, que dependendo do horário faz as ondas de variados tamanhos – resultando em diferentes cores – bailarem e espalharem-se, formando obras de arte sobre nossas cabeças. E as estrelas, então? É seu tom que define a distância que as separa da Terra, e ainda sussurra aos cientistas os segredos da expansão do Universo. O arco-íris, formado logo após a chuva de fim de tarde, é luz branca que atravessa as pequeninas gotas d'água e é refratada, exibindo suas sete delicadas cores e fazendo com que todos os duendes corram para esconder seus potes de ouro.

A natureza, sempre sábia, conhece direitinho o potencial de pigmentos. O flavonol das flores amarelas atrai abelhas, enquanto a pelargonidina das vermelhas convida mariposas e borboletas. Os animais com homocromia têm a mesma tonalidade de seu ambiente natural, uma dádiva que lhes dá uma vantagem incrível na hora de caçar, ou não ser a caça. Já o sistema de herança genética quantitativa é o que define o tom de pele de cada pessoa, e que também foi capaz de definir a História.

Até hoje, pessoas que possuem os alelos dominantes da cor negra são alvo de preconceito mudo. E um homem, num sonho insano de conquistar o mundo, chegou a decidir que qualquer pessoa sem os alelos recessivos da pele alva e dos olhos claros deveria ser exterminada, por não integrar uma suposta “raça superior”. A variabilidade genética ainda pode produzir o racismo, ápice da estupidez humana. A mesma cor, sob diferentes contextos, carrega concepções dissonantes.

A cor vermelha da bandeira comunista, que proclamava a igualdade entre nações, foi usada também pela bandeira nazista, que planejava a aniquilação de povos inteiros. As tinturas naturais feitas pelos indígenas brasileiros, a base de urucum, açafrão e café são ainda hoje usadas em diversos rituais, sendo que cada tribo tem seus próprios códigos místicos para as tonalidades. Pinturas intrínsecas são feitas na pele, denotando objetivos e glórias. Não importando o direcionamento, é inegável a influência das cores sobre as mais diversas sociedades. E, com a globalização, cada vez mais unem-se e desconstroem-se referências e ideias.

Num primeiro momento, os cinemas apropriaram-se apenas do preto e do branco para encantar gerações, com o humor refinado de Charlie Chaplin e os passos graciosos de Fred Astaire. Hoje em dia, o poder das cores evoluiu tanto que permite enxergarmos pessoas que estão do outro lado do mundo, com uma definição que assombrosamente caminha para perto da realidade. Sim, porque as telas, por mais modernas que sejam, são apenas isso: matizes combinadas que formam imagens. A LCD trabalha com três fontes de cores primárias e uma luz branca para brincar com os tons, e a Plasma trabalha com um processo químico liberador de fótons, que colidem com o fósforo na frente de células que as faz brilhar, também a partir das três cores fundamentais. Portanto, as imagens que vemos cheias de detalhes são apenas pequenos pontinhos coreografados da maneira correta, numa dança que diariamente embala milhões de lugares pelo mundo.

Se as cores não influenciassem tanto nossa rotina, então as balas não seriam tão coloridas, e os chocolates não teriam embalagens tão chamativas. Um chiclete amarelo pode ter corante derivado do alcatrão de carvão (um ingrediente excêntrico, sejamos sinceros), e tudo para enlaçar o consumidor pelos olhos. E os tecidos, então? Desde a Antiguidade, as pessoas sempre fizeram questão de manchar suas roupas com as mais variadas tinturas, obtidas naturalmente de folhas de eucalipto ou mesmo cascas de nozes. Sempre houve a impressão de que as cores despertam sensações. Só que, com o desenvolvimento da ciência, conclusões concretas estão sendo fundamentadas.

Alex Born, um dos maiores nomes do mundo em neuromarketing, está relacionando numa de suas mais recentes pesquisas áreas do cérebro estimuladas por cada cor. O cinza estimula o putâmen, área responsável pela distribuição de dopamina, criando uma certa associação de neutralidade; já o roxo, ligado ao polo frontal, remete a sensatez ou mistério.

Antes de ressonâncias magnéticas existirem, muitas já eram as crenças e superstições. Ingleses usavam lenços vermelhos no pescoço para espantar espíritos que causavam resfriados, e na Irlanda o verde é considerado coloração azarada: tem ligação com as fadas, e por isso pode trazer má sorte. Mesmo o homem do século XXI não hesita em, no Ano Novo, vestir suas roupas brancas e desejar um pouco de paz. E assistir, com olhos encantados, a explosão dos fogos de artifício, que com sais de cálcio cria uma procissão de faíscas laranjas, mas que se tiver sais de estrôncio misturados aos sais de cobre cria um tom de violeta, capaz de tirar o fôlego.

Existem pessoas que chegam a sentir o gosto das cores e de notas musicais, por culpa de um distúrbio chamado de sinestesia. Outras, com daltonismo monocromático, só enxergam o mundo em preto e branco. E pessoas cegas, quando perguntam sobre a aparência de certa cor, costumam receber respostas cheias de textura, sons e sentimentos.

Aristóteles, Leonardo da Vinci, Isaac Newton e Goethe foram apenas alguns dos homens que dedicaram muito tempo de sua vida elaborando teorias sobre matizes e tons. E uma professora, numa distorção absurda de perspectiva, ousou desprezar a pequena garota em mim, com sua caixa preferida de lápis de cor e suas grafites que não eram grafites, mas uma mistura de barro, goma, cera e pigmentos coloridos.

Acho que todos deveriam ser obrigados a carregar canetas coloridas nos bolsos. E, frente a qualquer realidade incolor e insípida, preencher livremente vazios e desilusões com as cores que mais lhe agradassem. O que seria de nós, afinal, sem o laranja da chama aconchegante? Ou sem o branco das nuvens macias? Sem a esperança verde, a harmonia lilás ou o primeiro amor cor-de-rosa?

Cada criança do mundo deveria ter o direito de pintar seu próprio sol de roxo. Não por rebeldia, e muito menos por má vontade. Mas para expressar, com pureza e liberdade, o direito humano de sonhar. 

E colorir seus sonhos.

Feitos de Carne


Inspirado na citação de Freud: “Somos feitos de carne, mas precisamos viver como se fôssemos de ferro”.

*

Quando crianças, aprendemos que precisamos ser educados e sorrir sempre, mesmo quando a educação não é recíproca ou não há nada engraçado sendo dito. Não podemos sujar a roupa nova no quintal, nem fazer muito barulho, e entender que mamãe brinca mais tarde, papai conta uma história depois; há coisas mais importantes a serem feitas primeiro. A sobremesa é só depois de comer todos os legumes – inclusive a cenoura! -, e chorar nunca vai adiantar nada. Acompanhamos oscilações de humor e caprichos que não somos capazes de entender, porque somos “tão jovens”. Somos apenas argila, manuseada de acordo com o dia de sol ou a manhã de chuva.

Ficamos mais velhos, e temos a obrigação de crescer, matando a criança que insiste em emergir e não ser perfeitamente agradável. E então é necessário ajudar em casa, aceitar a vida e não ter contestações ouvidas: olha o seu tamanho! Deixar o tio hipertenso fartar-se de gorduras porque não é da nossa conta, acenar afirmativamente com a cabeça porque dá menos trabalho, engolir opiniões de quem tem uma casa maior ou um carro mais bonito. Crescer é ser sério, duro, não ter coração ou cérebro, mas uma boca que aprenda a se calar nas horas convenientes. Precisamos funcionar como elástico, aguentando exigências e críticas, falta de liberdade e incompreensão. Esticar, esticar, esticar; não estourar.

Quando adultos, então, mal podemos ficar doentes. Se reclamamos, precisamos nos conformar; quando conformados, precisamos encontrar nossa ambição. Podemos ter carreiras promissoras e conquistas complexas, mas caso não carreguemos um sorriso no rosto o tempo todo, nosso sucesso é fracassado: a felicidade é obrigatória. E nada de atrasos! Tempo é finito, tempo é dinheiro, respirar gasta tempo; permanecemos acordando sem fôlego. Não podemos pedir ajuda, precisamos ter certeza de tudo, mesmo do desconhecido, mesmo daquilo para o qual não fomos preparados, e enfrentar indiferentemente nossos piores medos. Muito tarde para perseguir um sonho, muito cedo para desistir da rotina insossa. Temos que ser ferro, resistente e inflexível.

E então ficamos velhos. Somos abandonados em pontos de ônibus por não pagarmos a passagem, e renunciados por filhos ocupados demais: tornamo-nos apenas inúteis. Nossa opinião não é mais válida, por ser muito antiquada; só temos autoridade sobre o passado, e mesmo este é constantemente arrancado de nós. Os degraus ficam muito grandes, e a paciência das pessoas ao redor fica muito pequena: essas grandezas inversamente proporcionais começam a nos pregar peças. Choramos a morte de pessoa que amamos, mas choramos baixinho para não incomodar ninguém. As dores, então, precisam ser escondidas, junto com o temor de sermos os próximos, e acabarmos amanhã em pó. Temos que ser o papel rasgado e sem objetivo, apenas empurrado pelo vento e pisado por estranhos altivos.

E passamos a vida assim, como robôs resignados, com nossos parafusos de sanidade e reações já programadas. Esquecemo-nos das expectativas, das liberdades e dos sonhos. Aceitamos as regras impostas e os programas de televisão, e ignoramos sentidos e objetivos; somos apenas telespectadores mudos e apáticos. Vivemos automaticamente, pretendendo o aço, quando temos um coração sinuoso e uma mente intrínseca.

Trajamos máscaras e ignoramos impulsos, seguindo uma sociedade da qual nos excluímos, mesmo integrando-a em seu sentido mais literal. As palavras vazias preenchem todos os cantos. Não importa o quanto ignoramos nossa natureza; ela clama por espaço, e clama por voz. Porque podemos vestir todas as ideias politicamente corretas, todas as posturas civilizadas e todos os conhecimentos que nos afastam da espontaneidade, mas continuamos sendo humanos.

Somos humanos. Não argila, ou elástico, ferro ou papel. Somos carne e sangue: em suas implicações mais enigmáticas, belas e primitivas.

(Re)Começo

Foto retirada da página do Facebook "Viver em Santos", minha cidade

Sou péssima em titular coisas. Ao gastar horas a fio pensando num nome para esse meu espaço, só conquistei uma dor de cabeça e uma lista considerável de palavras a serem usadas. Após Olhos de Abismo, Doce Inconstância e Sonhos de Areia terem sido descartados, perguntei descompromissadamente ao meu irmão de 5 anos que nome eu deveria dar ao meu blog. Após 15 segundos da mais profunda reflexão infantil, ele arregalou seus olhos negros, e disse com ar inocente: "Mares de Marina!". Misturei minha humilhação intelectual ao orgulho de irmã mais velha, beijei sua bochecha redonda e saí saltitando, não sem antes ouvir a pergunta direcionada a minha mãe do que seria um blog, afinal de contas, e por que ela está feliz assim.

Isto soa como um começo, mas deve ser considerado um recomeço. O momento atual encerra o No Rose Without A Thorn, meu antigo espaço virtual. Com ele, conquistei diversos prêmios e publiquei mais que textos - amadureci. As palavras a princípio desajeitadas, as frases cheias de gírias e os planos ingênuos ganharam forma e gosto. Percebi, amargurada, que o blog como um todo era mera transição, e eu não tinha mais prazer em exibi-lo, carregá-lo livremente. Decidi num impulso afogar algumas lembranças (in)significantes e partir para um novo lugar.

Cansei-me de promessas e julgamentos vazios. Eu poderia depositar aqui todas as expectativas flutuantes que tenho quanto a este projeto, contudo acredito que a possível frustração futura não valeria esta ação. Assim, apenas arrisco-me a dizer que a primeira fase do Mares de Marina será uma reciclagem do que eu era para o que acredito ser. Textos que me tocarem serão reformulados aqui, e caso alguém demonstre profundo interesse por meu passado nebuloso, posso considerar uma reativação do NRWAT, como souvenir. Depois deste suposto acontecimento, continuarei minha árdua jornada de pseudo-escritora-de-dezessete-anos-cheia-de-coisas-para-fazer-e-além-de-tudo-em-ano-de-vestibular.

Essa é a ideia geral, e qualquer comentário construtivo será bem-vindo em minha caminhada.

Não tenho ilusões quanto ao andamento do barco. Talvez amanhã eu considere meus textos mal estruturados e tortos, e se for o caso, desviarei-me novamente da rota esperada. Essa é a graça de viver um dia de cada vez, ou planejando tão longe que a influência de um pensamento atravessado possa mudar bruscamente o futuro idealizado.

Sou perfeccionista, e não publicando algumas postagens logo, enlouquecerei entre rascunhos que almejam melhoras tão infinitas quanto infinitesimais. Sei que nem tudo aqui terá qualidade, e talvez seja mera pretensão minha essa mania de passar o tempo todo rabiscando qualquer pedacinho de papel com palavras vãs. Basearei-me em Stephen King, porém: "Se você quer ser um escritor, deve fazer duas coisas acima de todas as outras: ler muito e escrever muito".

Atualmente, minha dúvida universitária baila entre os cursos de Direito, Letras, Sociologia e Filosofia, tendo maior chance o primeiro. Contudo, desde minha infância nunca tive dúvidas quanto ao meu amor pela leitura, e agora arrisco minha dignidade ao dizer que, mesmo conhecendo inúmeros autores superiores a mim, o sonho é maior que o bom senso. Prometo contentar-me com a redação de embalagens de sabão em pó, se for o caso, mas a grande questão é que, ignorando o valor de meus escritos, quero libertá-los dos tantos cadernos e documentos virtuais que os aprisionam.

Posso me afogar nesta frágil tentativa de esperança - sou uma pessimista nata - mas antes disso tentarei prosseguir com meu sonho de menina, que sempre encontrou nos livros o conforto, e nas palavras a liberdade. O tempo será um inimigo menor que meu prazer ao apertar o botão laranja de "publicar", ao dar-me conta de que minha voz pode (sim!) ser mais importante que algumas imposições rotineiras como dormir e estudar assuntos que serão úteis apenas para uma prova absurda e definitiva, ao cabo deste ano.

Obviamente, espero agradar um eventual e desatento leitor que pare por aqui. Acima de tudo, entretanto, minha luta será contra o espelho, numa busca por melhor vocabulário, ideias aprazíveis e sorrisos momentâneos. Talvez eu fale sozinha, e por este mesmo motivo gostaria de uns assuntos agradáveis, umas histórias engraçadinhas e um punhado de melancolia, pois seria terrível entediar-me comigo mesma.

Assim, acabo otimista esta primeira postagem. Eu poderia escrever mais inúmeros parágrafos sobre quem sou - ou acredito ser, corrige-me Rousseau - mas para conhecer-me, os textos bastarão. Nessa minha trajetória humana, e por isso naturalmente egocêntrica, trarei mais de mim nas entrelinhas do que seria saudável. Escrever é isso, traduzir-se sorrateiramente, entregar-se mesmo quando em fingimento. Um vício, permita-me a ousadia.

Encerro por aqui. Bem-vindo aos meus mares, e que nos acompanhe a boa sorte.