Quando
as fotos apareceram no grupo de What’s App da turma de faculdade, um sentimento
agridoce apertou meu peito por debaixo de toda a agitação fútil que borbulhava
daquelas pessoas sedentas por sangue, abutres cercando a carne podre da última
fofoca.
Alec
era um quebra-cabeça a ser remontado.
-
Tudo
começou por culpa do meu terapeuta. Na verdade ele poderia se defender dizendo que tudo começou com meu trauma de
lugares fechados ou muito cheios, lá na minha infância. Nunca acreditei em destino,
então na verdade sou até inclinada a dizer que nada aconteceu, foi apenas um
amontoado de fatos aleatórios que me levaram até aquele elevador.
Enfim:
era uma sexta-feira logo após um feriado de quinta, então a capital
parecia esvaziada de estudantes e trabalhadores que eram de outros cantos e iam
visitar suas famílias. A faculdade carregava uma calma que não lhe pertencia, e
eu esperava pelas filas menores para entregar papéis da minha reprova em Cálculo I. Já imaginava a cara desagradável da moça que ficava no balcão do
sexto andar; talvez ela até exibisse um sorrisinho satisfeito ao ver que mais alguém
estava infeliz no que deveria ser uma emenda de feriado. Eu numa cidade
fantasma e ela num emprego que pagava mal, duas almas solitárias sendo atraídas
pela fatal atração do fracasso.
Eram
doze lances de escada. A conta capenga logo foi rechaçada por meu cérebro
sarcástico, parabenizando-me por tão genial conclusão. Nem imagino por que você não passou nessa matéria!, cantarolava uma
voz irritante de dentro da minha orelha. Ao lado dos degraus mal desenhados –
prédios antigos muitíssimas vezes sofrem dessa maldição – estava o elevador.
Passei
anos da minha vida sem subir num desses; meus pesadelos estavam lotados de
caixas sem saída e mares de gente nos quais eu me perdia. Como meus pais sempre
foram religiosos, passei por um sem-número de rodas de oração, exorcismos e
conversas com pastores, mas nada resolveu. Assim que ganhei meu primeiro
salário procurei tratamento psicológico, me estrangulei financeiramente para
conseguir pagá-lo e valia cada centavo. Shoppings não pareciam o inferno na
Terra, shows eram possíveis se eu ficasse perto da porta – ou num andar com
mesas espaçadas – e até elevadores poderiam ser usados, sempre à força mas com
uma pequena sensação de prazer (e alívio) assim que a porta se abria.
Com
a faculdade vazia, o elevador me encarava gravemente, esperando uma decisão. Eu
não estava tão cansada, e cada degrau me fornecia a liberdade que aquela
armadilha tecnológica nunca seria capaz de me conceder. Contudo, as folhas em minhas
mãos pesavam os quilos da derrota, e talvez ver-me fora daquela caixa metálica
fosse o empurrãozinho necessário para que o dia não parecesse tão horrível.
Pisei
lá dentro segurando um pouco a respiração, a luz branca oprimindo minha
alma covarde.
Eu estava quase mudando de ideia quando um braço surgiu entre as
portas que me trancavam à parte da humanidade e Alec apareceu com um bom dia.
Acenei afirmativamente engolindo minhas palavras trêmulas, sabendo que sair não
era mais uma opção.
O
monstro pareceu demorar mais que o normal em sua decolagem, mas o tempo sempre
ficava distorcido em seu interior. Por isso, quando a lâmpada oscilou arrastando o
sangue da minha cabeça, achei que era exagero meu, e ela logo estaria de volta.
Mas aí senti a gravidade se estabilizar, sem que as portas se abrissem. Não
havia número no visor, e o limbo me dava as boas-vindas.
-
Para
ser justa, o limbo nos dava as
boas-vindas. Meus neurônios corriam de um lado para o outro segurando
plaquinhas, quebrando máquinas com pedras e gritando coisas sem sentido, paredes
parecendo se inclinar sobre minha cabeça.
Quando
Alec segurou meu braço, a taquicardia interrompeu as diversas cenas possíveis
nas quais meu corpo se espatifava junto ao chão do elevador, caindo no fim de um poço
vazio e infinito. Eu poderia ter ficado grata por isso, mas estava ocupada com
o susto, tentando processá-lo enquanto meu cérebro continuava em pane.
-
Amanda, você está transparente de tão branca.
Havia
uma contradição naquela frase, e isso me tirou um pouco de dentro de mim.
Comecei a relembrar paradoxos, um ser
onipotente consegue criar uma pedra tão pesada que ele mesmo não possa
carregar?, me distraindo do terror, mas logo minhas pernas me traíram e
cambaleei, agora imaginando se algum deus entediado rasgaria o teto sobre minha
cabeça com uma pedra, deixando-me à beira de um buraco mortal.
-
Moça, você precisa respirar.
Parecia
uma boa ideia. Olhei pra ele com medo de que meus olhos saltassem das órbitas e
acertassem seu rosto.
-
Vamos lá. Respira... Solta... Respira... Solta.
Comecei
a acompanhar, mas era muito difícil. Eu poderia ter dito algo agradável, mas
preferi soltar a clássica voz aguda dizendo “nós vamos morrer”.
Alec
sorria tentando me tranquilizar, e explicando que era impossível que morrêssemos. Nada é impossível, rebati enquanto
apanhava o fôlego, sempre mecanicamente, sempre pensando que da próxima vez não
haveria ar e teríamos chegado ao fim.
-
Amanda, senta aqui no chão comigo, que tal? Ficar de pé é um esforço
desnecessário.
Joguei-me
no chão com a delicadeza de um saco de batatas.
-
Dá pra ver que você não gosta muito de elevadores, hein? Mas te garanto que a
gente não morre. Posso te contar uma história?
Ele
não esperou qualquer anuência para começar a falar.
-
Quem
me dera fobias fossem administráveis. Continuo o relato tendo desejado tê-lo
ouvido num boteco, e não num momento de caos mental. As palavras me abraçaram
naquele momento, mas afirmo aqui meu desejo de não profanar os mortos. Alec me
contou uma história com sua voz calma e seus gestos contidos, e a voz que a
ecoa é desajeitada e, pior ainda, traída pela memória.
-
- Eu sou do interior, e minha cidade natal é atravessada por um rio enorme.
Meu pai trabalha em um banco faz anos, e o cargo dele fazia com que tivéssemos
que nos mudar com certa freqüência. Ele e a minha mãe nunca combinaram de verdade,
e por isso eles brigavam demais. Antes que eu pudesse manifestar qualquer
vontade, o aquário apareceu. Ao meu redor, aqui e agora, dentro desse elevador
parado, você pensa que está ao meu lado, mas de fato há vidro invisível entre
nós.
Sou
filho único agora, mas já tive um irmão. O aquário surgiu quando ele ainda não
era nascido, e depois da morte dele ficou de vez. O acidente foi quando ele
tinha seis anos, estávamos brincando na calçada e um carro bêbado passou por
cima da gente. Eu sobrevivi. Talvez alguns graus, um novo ângulo para o carro e o pequeno ainda estaria
entre nós. A cena acontece de um jeito e permanece pra sempre, sem direito a ensaio ou corte.
Antes
de seu nascimento e de sua morte, enfim, meus pais estavam discutindo alguma
coisa. Meu pai sempre teve o hábito de empurrar minha mãe até o limite, e ela,
ajudada pelos remédios, perdia o controle. Nunca gostei de ouvir as discussões
dramáticas, com direito a pratos voadores e copos quebrados. Num dia em que me
escondi no meu quarto torcendo para que eles falassem mais baixo e eu pudesse
ver desenho animado em paz, surgiu esse aquário ao meu redor. A voz dos dois
estava abafada, mas em compensação a televisão nunca pareceu mais viva pra mim.
A água era translúcida, o vidro etéreo e tudo que eu precisava fazer era me
ajeitar por lá. A partir de então nunca mais consegui prestar atenção nas
brigas intermináveis; bastava fechar os olhos, me concentrar um pouco e lá estava
meu aquário particular.
Quando
um dos dois vinha encher minha paciência com discursos sobre quem estava
absolutamente certo e quem estava redondamente enganado, eu podia ficar lá por
horas me distraindo com as bolhas e o movimento calmo da água. Meus pais nunca
precisaram da opinião de ninguém; um ouvido bastava para que eles despejassem
tudo que os engasgava. Gosto de pensar que os ajudei assim, porque enquanto eles
se esvaziavam, meu aquário enchia. Para mim, mais água sempre pareceu bom.
Talvez ele tenha resolvido se materializar ao meu redor por causa do rio, era
para lá que eu fugia quando ainda me importava, e antes de nos mudarmos
novamente.
Depois
da morte de Tomas, duas coisas aconteceram. A primeira foi exatamente nada, o que me deixou muito perdido.
Sempre fui quieto, mas Tomas era uma criança iluminada, todo bochechas gordas e
uma risada deliciosa. Meus pais saíam muito de casa pelo ambiente que eles
próprios construíam, e Tomas ficava comigo. Tínhamos nossa rotina juntos,
esconderijos, palavras secretas. Eu, tão mais velho que ele, admirava sua
sabedoria, sua alegria permanente. Quando ele se foi, eu de algum modo sentia
que o mundo tinha que parar. Mas os noticiários continuaram indiferentes, o
dólar caiu e aumentou e meus pais não conseguiram deixar de implicar um com o
outro nem no momento do enterro. Resmungavam algo sobre o caixão enquanto a
terra o cobria. Estávamos no interior, não havia rio e a monotonia do mundo me
chocava profundamente. Onde estavam os trovões, mares se abrindo, raios
cobrindo tudo? Eu precisava de um pandemônio para confirmar que aquela partida
significava alguma coisa de importante e crucial, qualquer coisa. Qualquer
coisa teria servido, mas foi o nada que prevaleceu.
Na
escola as outras crianças tagarelavam sobre assuntos que não faziam sentido pra
mim, então eu não tinha vontade de conversar com elas. As notas ruins faziam
com que boa parte das professoras me desprezassem, e os adultos legais ficavam
para trás a cada nova cidade. O aquário era minha salvação até sua mudança, a
segunda coisa de que eu estava falando.
Foi
num dia em que meus pais mais uma vez gritavam coisas sem sentido, e eu os
ignorava enquanto jogava vídeo game. Só que daquela vez, quando ouvi minha mãe
jogando coisas no chão, um calafrio desceu pelas minhas costas e me lembrei da
caneca do Tomas. Larguei tudo e, quando cheguei na sala, o dinossauro desenhado
na porcelana se espalhava pelo cômodo, partido em mil pedaços em meio a flores
e padrões quaisquer, também partidos. Olhei para os dois, perplexo, com um ódio tão grande que,
num raro momento, a discussão parou. Eu tremia de raiva, e se houvesse uma arma por
perto eu poderia ter dado dois tiros sem maiores remorsos.
Eu
gritei que os odiava. Meu pai estufou o peito e minha mãe se jogou no piso de
madeira, puxando os próprios fios de cabelo e batendo os pés no chão, fazendo
um som infernal. Falei que não era sobre eles, que eles deviam respeitar ao
menos um filho perdido, e eles me mandaram voltar para o meu quarto porque eu
não entendia, porque eles estavam resolvendo coisas de adultos e eu estava
sendo egoísta.
No
dia seguinte eu queria conversar com alguém para por os pensamentos em ordem, e
pensei na Rosa. Você me lembra um pouco ela, Amanda, a Rosa tinha um cabelo
parecido com o seu. Ela era bem quieta, então preferi confiar a ela meu
desabafo. Ela me ouviu por alguns minutos, e disse algo sobre eu me afastar dos
meus pais e não ligar para eles. Achei o
comentário mal formulado, quase jogado como uma esmola mal humorada, mas era o
que eu tinha e o que geralmente se ganha ao contar problemas a terceiros.
Quando ela abriu a boca para lamentar sobre um vestido perdido, me calei e
observei a água do aquário. Ela parecia diferente. Mais turva. Eu olhava para
Rosa e tinha dificuldade de enxergá-la, ou de ouvi-la, mas assumia estar
acenando a cabeça nas horas certas já que ela não se interrompeu por um único
segundo.
Naquela
noite, antes de dormir, o aquário escureceu. A água ficou muito pesada, e eu
sentia algo entre o sono e o alerta, um meio de caminho que me deixava agitado
por dentro e lento por fora. Eu olhava para os meus braços e eles pareciam ter
o peso errado, minha cabeça era tragada pelo travesseiro. Pensei em pedir
ajuda, mas lembrei que ela nunca viria: meus pais não conseguiriam enxergar
nada além deles mesmos.
Foi
nesse ponto que eu cometi meu único erro: não esconder o que eu estava sentindo.
O aquário, que antes parecia tão amigável, agora me sufocava um pouco. Já fazia
tempo que ele não ia embora, mas normalmente eu podia desativá-lo. Depois da
morte de Tomas eu não havia tentado novamente; agora, mesmo tentando, não
conseguia.
Talvez
tenham sido meus movimentos lentos, ou o apetite descontrolado que me engordou
muitos quilos; até mesmo o hábito adquirido de dormir imediatamente após
qualquer bronca institucional, fosse da faxineira ou do diretor. O fato é que
um dia, depois da aula, uma professora me parou e disse que precisava conversar
comigo. Disse que percebia que eu estava muito triste e pediu que eu dissesse a
ela se havia algo de errado. Decidi contar tudo: sobre Tomas, sobre meus pais e
sobre o aquário, esse último causando uma concordância delicadamente cética. Que fique claro, o aquário nunca foi
metáfora, ele sempre existiu e sempre vai existir. Após me ouvir
compenetradamente, ela decidiu marcar uma reunião com meus pais.
Os
dois compareceram para, minutos depois, saírem da sala ofendidos: entre a inconformidade e o sarcasmo, me apanharam
no corredor. Pontuavam que ela não sabia nada sobre nós, e enquanto passavam a
mão pelo meu cabelo, na porta de saída, diziam que eu era um menino que tinha
tudo. Eles nunca haviam deixado faltar nada, insistiam muito nesse ponto: eu
tinha os melhores materiais escolares, as melhores roupas e os melhores
brinquedos. O diretor com certeza iria ouvir sobre conclusões precipitadas e
acusações infundadas, eles repetiam. A Srta. Ângela engolia em seco, olhava
para mim com certa aflição. Depois daquele dia toda sexta-feira, quando todas
as crianças já haviam saído, ela me segurava pelo ombro e me entregava pães de
mel caseiros. Eu agradecia, e nossa conversa se resumia a meia dúzia de frases
trocadas nesse momento. Ela às vezes perguntava do aquário, e eu mentia dizendo
que ele havia sumido. Foram mais três meses na escola, porque no final do ano
eu já estava morando em outro estado.
Meus
pais torraram minha paciência depois desse episódio, afirmando quando tinham
oportunidade que eu era ingrato. Diziam isso com certa mágoa na voz, e eu
precisava lidar com o fato de que eles eram humanos e me amavam do jeito deles.
Esse é um fato que sempre serviu mais para aumentar minha culpa do que para
perdoá-los, por compreendê-los e continuar me equilibrando entre a raiva e a
indiferença.
No
próximo lugar, em mais uma situação-limite acabei por desabafar com um garoto
parecido comigo, mais calado entre tantas palavras inúteis. Comentei do aquário e afinal descobri que
o Igor não era tão quieto assim - até o fim do Ensino Médio fiquei sendo chamado
de Peixe.
Mesmo
as pessoas bem-intencionadas que me ouviam acabavam mais me descobrindo como um
depósito de aflições do que como alguém a ser ajudado. O hábito do silêncio
ajuda muito na observação, e às vezes minhas palavras eram úteis. No início eu largava os problemas da minha
vida aos soluços – meus pais como o eixo principal – mas os ouvintes sempre
eram certeiros em suas respostas simplórias. Enquanto eu escutava pacientemente
e relativizava a dor alheia em pedaços, meu relato era um bloco único a ser
magicamente resolvido com meia dúzia de palavras e uma rápida retomada aos
problemas alheios. Meus relacionamentos unilaterais eram uma forma alternativa de superar a solidão e de me sentir um pouco mais importante. Era fácil - bastava sorrir nas horas certas, ouvir atentamente e lidar com meus problemas sozinho.
O
aquário foi ficando mais complexo com o passar do tempo. Muitas vezes após
minhas tarefas, caso me deitasse na cama, o aquário ficava escuro, e eu chorava
por horas seguidas, tocando as solas dos pés e dobrando meu corpo para sentir
que eu ainda não havia me dissolvido. O tempo escorria ao meu redor e grudava
em minha pele; eu não tinha energia
para afastá-lo. Uma técnica muito utilizada era me entupir de todas as tarefas
possíveis para manter meu corpo funcionando quase automaticamente. Quando eu
parava, sabia que o aquário me envolveria como um útero confortável e
paralisante. Comecei a trabalhar muito cedo e sempre fui responsável com as
obrigações implicadas; guardei o dinheiro rigorosamente com o objetivo de fugir
de casa da forma mais pacífica possível – com uma boa desculpa.
Apesar
de não ter tanto jeito com as pessoas, eu tinha esperança de, ao largar meus
pais, conseguir lidar com humanos de forma mais otimista. Tirar o peso das
minhas costas, e quem sabe, me livrar do aquário, já que eu não tinha controle
algum sobre ele. Às vezes, entre as pausas cotidianas, eu precisava me refugiar
em algum banheiro para reaprender a respirar dentro d’água e seguir com o dia.
A distribuição de sorrisos automáticos nunca acabava, e na verdade era raro o
dia em que alguém me perguntava se eu me sentia bem. Mesmo detalhando toda a dor e letargia e escolhendo a dedo um confidente, a decepção era exata. Entregar meu coração em uma bandeja de
prata era um exercício que havia se mostrado insustentável e inútil, então optei pelo cotidiano farsesco. Às vezes eu imaginava que, se levasse um tiro no
ombro, conseguiria manter um rosto impassível puramente pelo hábito.
As
brigas dos meus pais foram ficando menos dramáticas após duas décadas e um
tanto, então quando consegui dinheiro para me mudar para a
capital, ambos me deixaram ir com o sentimento de que tinham feito tudo certo.
E eles de fato fizeram, dentro de suas limitações. Ambos eram cegos e egoístas,
e não por isso menos infelizes. Arrastei meu aquário rumo à liberdade.
E
foi sozinho que me dei conta: o aquário havia se tornado grande demais. Chegar
em casa e deparar-me com a ausência da violência fazia com que a água se
esparramasse e inundasse até os eletrodomésticos. Eu nadei pelas ruas, pelo
trabalho e pela faculdade, olhando ao meu redor e observando meu próprio corpo
como um espectador. Meus movimentos muitas vezes não pareciam sincronizados,
como se o tempo e o espaço rodopiassem do aquário e fossem desajeitadamente
atirados para fora. O problema de abandonar a zona de guerra é que o estado de
alerta se torna parte de você. O ar cheio de tensão, o cansaço pelos
pensamentos obsessivos, os sobressaltos com qualquer sombra brusca. O vidro
havia engrossado de forma irreversível para que eu alcançasse a compaixão
humana, e a água me afogava por vezes.
Ando
pensando muito nisso. É verdade - me tornei um peixe, Marcela. E meu destino,
único e certo, é terminar em águas. Não num elevador, num poço seco e urbano. Não mesmo.
-
Assim que as últimas palavras dele foram derramadas no
chão, a luz voltou e o elevador tomou impulso. Comecei a chorar aliviada, e
quando as portas se abriram saí bruscamente. Quando minha alma começou a
posicionar-se dentro do meu corpo, olhei para trás e deparei-me com Alec, mais
uma vez abandonado por um ouvinte. Tentei pegar o ar para dizer-lhe algo, mas
seu aceno cortou qualquer outra chance de comunicação, as portas do elevador o
fechando novamente em si mesmo.
-
A
dúvida rondava minha cabeça, e eu realmente gostaria de prolongar aquela conversa. Queria compreender de onde havia vindo tanta profundidade dividida com
uma completa estranha, mas tinha medo da resposta.
Segunda,
terça, quarta, quinta, sexta, segunda. Não o encontrei. Deram falta dele
primeiro no trabalho, homem foragido de reuniões importantes. Nas chamadas da faculdade, principalmente nas matérias em
que o professor era rígido quanto às faltas, finalmente algumas vozes começaram
a perceber que havia algo de errado. Foi o locador de seu apartamento que abriu
as portas de um lugar escuro e com água até o tornozelo devido a um vazamento na cozinha.
Foi
olhando para meus colegas de sala após o sumiço de Alec que comecei a
entendê-lo melhor. Todos comentavam sobre sua simpatia e seus comentários afiados, mas nenhum de nós tinha sequer ideia de sua vida
particular. Endereço, possível namorada, mesmo o nome da companhia que ele integrava.
Alec participava de tudo como uma espécie de mobília que sabemos que existe,
mas sobre a qual nunca nos detemos. Uma espécie de peça-camaleão que se camufla
e acaba por lá ficando, beleza perdida pelo véu do cotidiano.
Eu
havia comentado com algumas amigas que havia ficado presa no elevador com ele,
sem citar maiores detalhes daquela história tão particular e triste. Assim,
quando a polícia me convidou a prestar depoimento, aceitei, pensando em quais
seriam as palavras certas para não considerarem Alec louco e interromperem as
buscas.
Acertei
sem querer. Disse a eles que, na breve conversa que tivemos, Alec deu mostras de nostalgia (principalmente em relação a ele mesmo), e logo o delegado me
interrompeu perguntando se ele havia falado de casa. Perguntei se já haviam
consultado os pais dele, e fui informada de que as investigações estavam sendo
conduzidas com sua ajuda.
Minha
pausa foi breve. A charada estava ali, sorrindo um sorriso cruel, e eu não
queria ser a pessoa a carregar o fardo de ter vislumbrado o futuro e não ter
feito nada. O fardo, entretanto, nunca se importou com a minha vontade.
-
Sabe, pensando bem, ele disse que estava com saudades.
Dele
mesmo. De habitar fora do aquário e de suas ondas furiosas e paralisantes. De
ar livre, de vida.
-
Mas não bem de casa, sabe. Ele falou bastante da cidade natal. Vocês andaram pelo local?
Não,
das tantas residências ninguém se deteve na primeira. Um corpo não identificado
havia sido entregue na cidade vizinha e depositado na margem esquerda do rio. Oito dias após o episódio do elevador, Alec finalmente foi reconhecido. Seus pais me
agradeceram por ter permitido um enterro ao seu filho, e fiquei imaginando se
haveria alguma outra discussão sem sentido no momento em que o caixão fosse coberto pelo coveiro. Algo me dizia que sim.
Mas
a tragédia não terminou aí, porque um grupo de rapazes viu Alec se equilibrando
em cima de um declive muito alto próximo ao rio e imaginaram o que viria a seguir.
Não se preocuparam em impedi-lo, mas tiraram várias fotos do resultado final –
um corpo semi-estraçalhado a metros de distância de estranhos desumanos.
Eu estava de pijamas e preparando meu jantar quando tudo começou. Foi o conteúdo das mensagens das pessoas da minha sala de aula que concederam o cenário principal, já que meu celular só carregaria as fotos se eu as selecionasse uma a uma. Eu imaginava Alec e sua preparação,
observando as pedras abaixo, pescoço inclinado perigosamente para contemplar as
águas. O salto, um corpo projetando-se no ar: último vislumbre de sujeito antes
de tornar-se mera carcaça. Meus colegas estavam interessados
nos órgãos, exclamações e emoticons fazendo a performance da (suposta) dor
humana. e com o estômago embrulhado escolhi uma das imagens para ser entregue em meu celular, me sentindo tão cruel quanto qualquer um deles. Entre curiosos e feridos, parecíamos todos iguais.
Sentada
no sofá, apetite assassinado, eu buscava alguma migalha de conforto, qualquer pista de que nem tudo havia dado errado. Meu celular chacoalhava com o debate inflamado sobre a moralidade daquilo, mas eu não queria pensar mais nisso. Com a ponta
dos dedos alarguei a foto e me aproximei de seu rosto uma última vez.
Metade de seu rosto estava esmagado contra o chão. O que sobrou de Alec, mesmo comprimido, mesmo desabado pela gravidade, parecia de alguma forma mais leve.