terça-feira, 2 de agosto de 2016

encontro comigo


Acontece de vez em quando, e aconteceu dia desses.

É necessário um determinado estado de espírito, talvez trazido pela emoção de estar me guiando pelas ruas de uma cidade que não me pertence. A péssima memória geográfica fazia com que o celular se fingisse de mapa, e uma diversão pura como eu não tinha há tempos enchia meu peito. Míope e sem óculos, observava as árvores de folhas indistinguíveis, amassadas pela visão defeituosa, mas não menos coloridas: a paisagem era nova e me dissolvia em sua escassez de pessoas e trânsito. Procurava as placas de rua excitada com a ideia da coragem necessária para a proposta de perda e retomada, depois do erro na rota devidamente reconhecido. 

Sim, foi exatamente por isso. Dobrei uma praça sem horário para aquela caminhada, e ali, vinte metros adiante, estava eu mesma.

Fazia tempo que não me via assim, numa esquina esquecida. Queira me entender, sou do tipo que dorme consigo mesma e não liga no dia seguinte. Mas, acredite, dói em mim também. Dói mais em mim, porque sou eu quem precisa tomar a iniciativa quando as coisas estão perto de dar certo demais. Estou parada logo ali, passos mecânicos me aproximam de mim mesma, e ensaio um pedido de desculpas.

São desculpas sinceras. Tento não me maltratar, mas é mais forte do que eu. É amor, sim, um amor louco que às vezes odeia o olhar de esperança em meu rosto. A ingenuidade e a expectativa, não sei lidar com elas nesse corpo que às vezes observo, enquanto durmo. Tenho uma beleza enorme e quero me abraçar, mas sou eu, sozinha, quem sabe da podridão que ali repousa.

Às vezes me sinto tão bem e forte que o medo me consome. Eu me aviso, dou pistas sobre tudo que pode falhar, mas a intensidade me separa de mim. Esse sempre foi o problema: sou radical demais com sentimentos. Prefiro a segurança, e quando tomo riscos, a raiva se instala em meu estômago e lá me aguarda. Sou paciente. Espero a queda, e quando ela acontece, sinto necessidade de tomar as rédeas, pular de uma rua atravessada e enfiar o dedo na minha cara dizendo “eu avisei”. Choro até me acabar e peço desculpas, mas é difícil aceitá-las. A violência das emoções é transferida para a ponta da minha garganta, e grito comigo mesma transfigurada pela fúria. Frágil, me recolho e reconheço minha insignificância; a pena me faz oscilar, despertando o desprezo.

Agora são dez metros. Daquela esquina me encaro sem medo, mas baixo os olhos aqui, envergonhada. Você sabe o que é desprezar a si mesmo? Tenho nojo do meu cérebro viciado, e é o nojo que acende o alerta do vício. Estou em abstinência faz alguns meses, mas isso não diminui a sensação escancarada de insaciedade. Eu quero, eu preciso, e sou eu quem segura minhas mãos com firmeza quando tremo demais. Como posso me abandonar assim, a única pessoa que sempre está comigo, e que conhece a dor? Os espelhos estão cobertos para que o ciclo pare de alguma forma. A lenda do vampiro é muito maior do que dizem, uma mitologia pouco explorada sobre desejos pecaminosos e sussurros noturnos. Como não acreditar que a imortalidade e a violência são aspirações eternas? Quem puxa as cortinas e deixa o sol entrar, quem arrisca queimar a pele com a luz mais mortífera e bela que jamais será superada? Poucos. Justifica minha vida solitária, permita-me a honestidade.

Você não sabe o que é desespero. Eu sei, e a poucos passos de distância está a única outra pessoa da galáxia que sabe. Ensaio algum argumento e no instante seguinte lembro que meus olhos me desmascaram. Preciso dizer alguma mentira para me acalmar, porque a verdade é massacrante. Estou respirando fundo, talvez eu colapse antes de me reencontrar, e então sou eu quem dá passos, vindo em minha direção.

O silêncio cai tão pesado quanto um navio cargueiro, com a lentidão de uma pluma.

- Paradoxos e inconsistências, estou cheia deles, não é?

Minha risada oscila, olho para mim e o sorriso é firme e muito mais sincero. Não faz sentido para mais ninguém, e por isso estou satisfeita de dividir esse momento comigo.

Começo a dizer algo e me calo, dedo nos lábios.

- Vai ficar tudo bem.

Acredito. Que caiam os céus, porque esse relacionamento vai dar errado e continuo insistindo. Sou um componente instável de uma fórmula duvidosa: sempre há fumaça e explosões. Essa é a graça, chego quando menos espero e me assalto, brigo comigo mesma num ímpeto homicida, me torturo consecutivamente procurando meus limites físicos e mentais. Se nunca saio ilesa, o que seria diferente agora? 

Não sei, mas me permito acreditar, porque naquela tarde fez sentido. Talvez haja um pouco de raiva mais tarde, mas agora sou eu quem fica enquanto me observo prosseguir o caminho. Estava com saudades, e por alguns instantes experimento a plenitude. Depois aguardarei, por segundos ou séculos, em alguma esquina esquecida.