quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

A concha e a finitude



Era um daqueles típicos dias abafados nos quais o ar parece feito de blocos de calor a serem atravessados, um a um. Mesmo a brisa marítima – suposta cúmplice do oceano – parecia ter sido esmagada por essa força invisível que deixa o mundo sufocado e preguiçoso.

Minha mãe estava na areia, descansando, e eu brincava no mar com meu irmão de sete anos. Enquanto sua ocupação se resumia a jogar água em meu rosto e sair correndo às gargalhadas, eu o observava sob o prisma de amor ao qual as irmãs mais velhas são submetidas: a beleza de seu bronzeado desleixado, as pernas compridas, o cabelo bagunçado, o som da risada sincera de quem contempla a felicidade em seu viés primordial. Ele era uma pequenina obra de arte de grande valor.

Após ser atacada diversas vezes, retribuindo de forma mecânica, resolvi surpreendê-lo ao jogar uma concha em seu peito. Seus lábios infantis formaram um “o” por alguns segundos, o mundo por um instante congelado perante sua expressão genuinamente estarrecida: quando a rotação do planeta se restabeleceu, as gargalhadas aumentaram ainda mais. Contudo, minha segunda tentativa desajeitada acertou seu rosto, e rapidamente a graça se desvaneceu.

- Você me acertou! – os olhinhos negros me encaravam, indignados.

- Foi sem querer...         

Não tive tempo de terminar. Logo ele se encaminhava para nossa genitora numa marcha resoluta, apenas interrompida brevemente num trecho em que as bolachas-do-mar infestavam o solo. Encarou-me, bravo, e precisei conter o riso ao erguer meu acusador no ar e carregá-lo por alguns metros para que concluísse sua denúncia. Passado o local crítico, balançou-se no ar, chegou ao chão e correu na direção de nossa mãe, as pegadas leves conduzindo-me ao julgamento atroz.

A mãe recebeu-o de braços abertos, ouvindo num jorro o relatório sobre a pequena tragédia. Mal sabia ele, tagarelando naquele tom agudo de crianças resmungonas, que o juiz do caso já havia se vendido, piscando um olho para mim.

- Foi um acidente, ela não fez de propósito, aposto que não...

- Eu nunca mais quero ir pra praia com ela! – disse ele, ofendidíssimo.

- Nunca mais é muito tempo, meu amor.

E eu sorri da petulância infantil, também um pouco ferida por meu próprio ato torto. Eu sabia que ele acreditava em suas palavras: naquele momento, sua raiva pueril afirmava com veemência a decisão. Promessa que seria facilmente quebrada na próxima semana, ou até no dia seguinte: isso me era perfeitamente claro. Mas não são assim as crianças, bradando do fundo dos seus pulmões verdades a serem desfeitas em alguns segundos?

Agora, finzinho de ano, a cena voltou para me assombrar com seu aspecto irônico: a ingenuidade foi minha. Não seriam os radicalismos e as promessas de fim de ano apenas um sintoma do quanto nós, seres humanos – independente de idade – não entendemos a fundo as noções de tempo e espaço?

Quantas vezes repetimos para nós mesmos a veracidade dos “para sempre” impossíveis? Quantas vezes, entre lágrimas, não respiramos fundo e acreditamos piamente em nossos “nunca mais”? Advérbios cheios de significado num momento específico, e que perdem sua intensidade conforme o tempo passa e as velhas desculpas se instalam em seus devidos lugares, justificando nossas falhas. Alguns erros são verdadeiros vícios: aproveitam-se das fissuras de nossas personalidades e por ela são atraídos, refugiando-se nas teorias complexas que inventamos para permitir que eles se repitam.

2014 foi um ano decisivo em minha vida porque decidi romper alguns ciclos intermináveis que me perseguiam, e essa foi de longe a mudança mais radical (e mais difícil) que executei.

É necessário livrar-se dos sentimentos inúteis, em primeiro lugar, porque só assim a franqueza tem a liberdade de repousar nos olhos sem o ímpeto de destruição. A arrogância e a autocomiseração são meros exemplos de uma infinidade de emoções que atuam no naufrágio cotidiano. Somos ensinados a lamentar nossos lapsos, a ajoelhar-nos para pedir-lhes perdão, esperando a salvação externa. A indústria da culpa move engrenagens que permitem a morte da autocrítica e uma boa noite de sono. É difícil despir-se dos pretextos usuais - não é fácil aceitar a carga de responsabilidade a nós delegada em cada gesto. Contudo, fazê-lo é permitir que sejamos protagonistas da nossa própria história. Permite um olhar demorado sobre o espelho – permite o crescimento sincero.

2014 foi também sobre testar limites. Foi sobre chegar à exaustão, e também sobre privar-me de comportamentos tóxicos que não me faziam bem de verdade – e daqui cito o açúcar em demasia e pessoas não-confiáveis. Perdi 12 kg e algumas “amizades” a partir dessa filosofia, e indubitavelmente o esforço foi válido.

Conforme aprendi a aceitar-me, o caos mental foi sendo amenizado, pouco a pouco. Depois de um verdadeiro apocalipse interno em busca de respostas, descobri a doçura das perguntas certas. Aprendi que o silêncio não muda mentes intolerantes, mas preserva minha sanidade. Aprendi que, às vezes, as pessoas que amamos optam por chafurdar na lama da infelicidade, e que por mais que queiramos oferecer auxílio, ele de nada vale quando a revolução não é pessoal (e essa foi a lição mais dolorida de todas).

Aprendi, acima de tudo, que promessas longínquas e pontos de partida genéricos de nada servem. Por isso, eu espero que você consiga lutar por um futuro melhor mês que vem, na próxima segunda-feira, daqui a dois dias, daqui a 20 horas. Espero que você não desista dos seus sonhos quando gente entediada vier enumerar motivos pelos quais você não pode alcançá-los. Que você tenha coragem de admitir seus erros, e mais coragem ainda para se perdoar. Que tenha calma para apreciar os pequenos momentos, que no fim das contas são aqueles que nos fazem sorrir e iluminam um dia qualquer. Que tenha sabedoria para não gastar energia com o que não vale a pena, e que tenha amor para lidar com toda a intolerância que nos cerca. Amor para não ser intolerante, também.

Meu 2015 será um ano pós-revolução, e não espero o melhor dele. Cansei de esperar: quero o melhor de mim. Para você, eventual leitor e silencioso amigo, meus sinceros desejos de força, coragem, calma, sabedoria e amor. Todos supracitados, todos de coração.



*



Caso alguém tenha ficado preocupado, meu irmão de sete anos me perdoou, e no próximo dia de sol provavelmente estaremos novamente na praia, nos divertindo. É de momentos assim que pretendo me cercar, se não para sempre - um termo vão e impreciso - pelo máximo de tempo que eu for capaz.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

A Síndrome do Castelo de Areia


Sábado à noite. Num restaurante qualquer, um grupo de amigos se entretém decidindo que pratos pedir, já que apenas o valor da comida será dividido entre todos. Uma das jovens à mesa comenta que, sendo vegetariana, ficaria de fora do pagamento coletivo para escolher algo que correspondesse ao seu estilo de vida. Não começa nenhum discurso sobre assassinatos, crueldade contra os animais, testes de laboratório: faz sua constatação com poucas palavras, pacificamente.

Contudo, o comentário inofensivo provoca indignação do outro lado da mesa. Um rapaz não hesita em discursar em tom de escárnio sobre como vegetarianos são arrogantes e como tal comportamento não faz sentido. Palavras agressivas e autoritárias jorram de sua boca e ninguém parece se importar, nem o próprio enunciador – para ele, a violência da opinião displicente passa despercebida. A moça, surpresa pelo ataque gratuito de um desconhecido, recolhe-se num silêncio que mistura constrangimento e raiva.

Quem me dera a cena tivesse sido inventada.

Não sou vegetariana, e essa não é a questão. O problema no qual me concentro ao presenciar momentos assim é a tendência facilmente observável – e por isso, infelizmente, banalizada - da intolerância, da necessidade de imposição das crenças individuais. Mero exemplo entre muitos, muitos outros.

Não existem assuntos não-discutíveis: existem pessoas que não sabem discutir. É saudável e necessário que ideologias – políticas, religiosas ou futebolísticas – sejam, sim, alvo de debate. É justamente do questionamento que evoluem as ideias, que se entende melhor o mundo. Vivemos, entretanto, na era da velocidade e do conformismo. Chamo a esse conjunto perturbador de Síndrome do Castelo de Areia.

Segundo essa teoria inventada impulsivamente numa tarde de terça-feira, há pessoas infelizes no mundo. Dentre essas pessoas, algumas – afogadas em sua mediocridade – não enxergam forma fácil de melhorar a própria vida. Normalmente a solução demanda mudança, que por sua vez exige energia e auto-crítica. É muito mais fácil, convenhamos, deixar-se arrastar pela inércia de uma rotina acinzentada.

Mas nem tudo é perfeito. Alguns seres humanos, inquietos, desenvolvem um raciocínio e um comportamento que vai contra a ordem pré-estabelecida. Não necessariamente o tipo de adversidade que interfere na vida de outrem, bastando a singularidade que de fato diz respeito ao seu praticante: pode ser da forma de se vestir à preferência sexual. Basta tal cenário para que entre em cena a síndrome: uma parte das pessoas do parágrafo anterior, deparando-se com o incomum, sente um desejo incontrolável de condenar tudo que não compreende.

Não é fácil construir uma visão pessoal embasada. Cada pergunta, resposta e dúvida demoram a solidificar-se; tempo, leitura, experiência e outros fatores, pouco a pouco, podem construir de fato uma estrutura tão complexa quanto um castelo de areia. E não é fácil, por sua vez, construir um castelo: a areia é traiçoeira, e cada escultor imprime em sua obra tantas peculiaridades quanto é capaz. Sua imponência é adquirida pouco a pouco, e o artista desenvolve naturalmente um amor por sua obra.

E então chega o intruso, juiz da vida alheia. Não é de sua natureza apreciar a beleza singular da escultura, e buscar em seus recantos o encanto de um universo novo. O único desejo que irrompe em seu peito é o da destruição: ele quer, de qualquer jeito, por o castelo abaixo. Olha discretamente para trás, lembra-se da pobre pilha de areia que o aguarda em seu retorno triste e vazio e não hesita em seu ímpeto de ódio.

Se o carrasco não é frustrado por sua falta de bagagem, então está tomado por uma egolatria que sussurra em sua mente que toda e qualquer pessoa tem obrigação de fazer uma cópia fiel de seu castelo, porque através de uma lógica louca chegou à conclusão de que sua visão é a única “correta”.

E lá vai o demolidor – criança mimada travestida de adulto sóbrio – seguir seu impulso cego, sem admitir que um monumento erigido com tanto trabalho não será desfeito por um desejo infantil. O único efeito de fato é a reação de quem assiste ao ataque – reação essa que, obviamente, nunca será positiva.

Não é que todo castelo seja revestido de um caráter sagrado e intocável: simplesmente subestima-se a importância de nossas verdades humanas. A vida é uma grande lacuna sem sentido, e não há quem sobreviva a ela sem preenchê-la com seus próprios pilares, sejam eles a filosofia ou a televisão. Sem nossas ilusões e convicções para sustentar-nos, desabaríamos perante a enormidade do Universo e a pequenez de nossa existência.

Muitas vezes nos deparamos com pessoas que escolhem bases tóxicas – um racista, por exemplo. Por mais que seu preconceito seja algo danoso, é inútil gritar com ele para que seja compreendida outra visão, já que dificilmente uma discussão acalorada o faz mudar de ideia. Entretanto, a conversa amigável e questionamentos deixados cuidadosamente pelo caminho podem surtir mais efeito: deixa-se o protagonismo de uma nova postura para o agente da intolerância. Para muitos ativistas, é difícil entender a lógica de um tratamento "suave" para o dito opressor; contudo, o radicalismo do discurso é ainda mais ineficiente. Numa situação de extrema agressividade, a resposta enfática e enérgica é realmente necessária; contudo, quando se passa para um cenário no qual a intervenção pode ser feita sem ânimos exaltados, a conduta pacífica é mais fértil. Por pacífica, aponto a ausência de violência - inteligência, ironia e lógica são o contraponto perfeito para qualquer fundamentalismo. É da natureza humana a defesa contra o questionamento, tido como “ataque”, e por isso mesmo é essencial a calma daqueles que querem intervir na postura do próximo positivamente.

Voltemos ao restaurante daquele sábado à noite. Debrucemo-nos sobre o rapaz que discorda do vegetarianismo. Brincando de Deus – poder concedido ao escritor em seu microcosmo particular – mudarei a abordagem da cena. Agora, ele muda de lugar na mesa – senta-se ao lado da moça – e indaga, neutro, sobre os hábitos dela.

É comum que os escultores em geral sintam medo de expor suas obras, temendo eventuais ataques. É usual que sonhos e ideais sejam encapsulados e escondidos para não serem atingidos pela obrigação velada de permanecer-se na área de segurança delimitada pelo cotidiano insosso.

Mas a moça não fará isso, porque pressente a sinceridade do interesse. Assim, ela faz algo na maioria das vezes impensável: permitir que ele vislumbre o castelo.

Ele, firme, aponta pontos instáveis na estrutura; ela, surpresa, defende as imperfeições. Lado a lado, atravessam a arquitetura e tecem toda sorte de comentário. Não é que ela mude de ideia; o tempo é finito, e o rapaz se vai. Contudo, a voz dele ainda ecoará pelos cômodos vazios, e ela nunca mais olhará para as linhas tortas sem questioná-las. Provavelmente num momento de distração – ônibus cheio, ciclovia vazia – ela vá refugiar-se em devaneios, e neles será capaz de estudar sua criação por ângulos antes esquecidos. E, sozinha – mas após uma intervenção externa – ela será capaz de melhorar seu castelo. Não por imposição, mas porque a compreensão de uma melhoria num dos sustentáculos de sua alma tem um apelo irresistível.

O termo “ganhar uma discussão” deveria reverberar em todos os ouvidos como o absurdo que é. Pode-se afirmar de forma desleixada que todo o conhecimento adquirido pelo homem está ao alcance de um botão; a informação mais acessível, entretanto, não costuma ser utilizada como enriquecimento e sim como vitrine de argumentos. Basta deitar os olhos sobre um resumo, absorvê-lo de forma rasa e assumir uma postura arrogante: o tom de voz mais alto é o vencedor. Vencedor de uma disputa que não tem outro objetivo senão a auto-afirmação, o autoritarismo e um inútil sentimento de superioridade, a vã vaidade daqueles que passam a vida sem interrogações, seguindo regras que mal compreendem e sentindo-se desconfortáveis quando têm a ordem rotineira quebrada. A democracia é defendida em tom autoritário, e assim se esquece que o âmago da liberdade é a aceitação: primeiramente de nós mesmos, e, depois, do próximo.

A intervenção pacífica é o melhor caminho, pois engatilha revoluções de dentro para fora. Talvez seja meu amor pelas utopias que me permita acreditar num futuro mais democrático, menos dogmático. Futuro no qual as pessoas possam ouvir umas às outras sem medo do quão loucas ou deslocadas possam parecer, e sem serem de fato julgadas incessantemente por outros que têm como único benefício disso a arrogância infrutífera.

Não lamento tanto pelos destruidores de castelo de areia – esses normalmente já se blindaram contra minhas palavras. Aliás, se há algo que o tempo me ensinou é que as pessoas possuem o curioso hábito de enxergarem apenas o que querem (e quando lhes interessa). Meu lamento é por todas as vozes que se calam por medo da repreensão. Sonhos foram engaiolados, e os próprios sonhadores acostumaram-se ao conforto da prisão que criaram.

Foi-se meu tempo de resignação e silêncio - acostumei-me a deixar para trás os mísseis, escavadeiras e bombas atômicas lançados pela inflexibilidade cega. Prefiro carregar comigo a vitória de cada semente de incerteza que, de forma delicada, deixei na cabeça daqueles que se dispuseram a ouvir-me. Levo, também, cada ensinamento com o qual fui presenteada ao conhecer opiniões divergentes. Do tirano ao submisso, do alienado ao fatalista, da senhora do ônibus ao palestrante de sorriso falso: cada um deixou comigo uma parte de si, e para isso foi necessário apenas contemplar a diversidade de interpretações possíveis sobre a imensidão da vida. Se mudar o mundo é um clichê barato, ainda assim é de um idealismo inofensivo pelo qual vale a pena lutar.

E, caso alguém discorde, pode sentir-se à vontade para dividir um pedaço de torta de cereja e explicar-me minha inconsistência. Meu castelo de areia é firme, mas sempre dá as boas-vindas a um visitante em missão de paz.