Conto escrito para um concurso no qual não fui vencedora. Não ficou exatamente do jeito que eu imaginava porque havia o velho e maligno limite de caracteres, mas publico-o mesmo assim. Boa leitura! (:
Apenas a cabeça dela estava presa.
Era estranho sentir o resto de seu corpo livre: os joelhos
tocando um solo áspero e frio, o tronco paralelo ao chão desconhecido, como um animal
de quatro patas. Seu crânio estava isolado por uma estrutura metálica, um enorme
capacete retangular firmemente apoiado em algum lugar. Quando ela
abriu os olhos, pensou ter ficado cega, até perceber a bizarra dualidade de seu semi-confinamento. Lembrou-se da vez em que ficara presa no guarda-roupa de
sua mãe, e do medo pueril de ser esquecida pelo resto do mundo, nunca ser encontrada. Ao menos, daquela vez, sabia onde
estava.
A claustrofobia enchia o pouco ar quente disponível,
e o cabelo de Luma grudava em sua testa sem que suas mãos pudessem socorrê-la. Passou a
esmurrar aquela perturbadora barreira física, mas o barulho ecoava muito
próximo aos seus ouvidos, alto, fazendo-a tremer. Tentou forçar-se para fora, e uma dor
excruciante percorreu sua espinha. Sentia como se um rato tivesse decidido
passear por sua coluna, roendo alegremente seus nervos e
cartilagens, cada pequeno passo uma explosão em sua corrente sanguínea. Parou, ofegando e imaginando que logo o único resultado plausível seria seu pescoço quebrado. A imagem preencheu seu cérebro: a cabeça
pendendo do corpo inerte, seus olhos esbugalhados e parados, um sorriso de desespero
congelado em seu rosto roxo... A impotência arrancava seu fôlego a grandes
golpes. Sempre diziam que ela era muito racional, e acreditando nisso, era
horrível não ter o controle da situação. Não havia raciocínio ou lógica que pudessem
ajudá-la.
E então veio a terra. Uma fenda fora aberta de repente
acima de sua nuca, e a repentina frieza metamorfoseou-se em puro pânico. As
partículas infiltravam-se entre suas mechas, tocando sua pele,
pesando, empurrando-a para baixo. Algo se mexia em seu queixo, talvez minhocas
geladas, talvez vermes apreciadores de carne humana; independente disso, nenhum
gesto brusco que ela fizesse surtia efeito.
Impulsionou-se para cima, fechando
como conseguiu a abertura pela qual a terra caía. A pressão,
contudo, ia crescendo gradativamente, e seus músculos frágeis não suportariam
por muito tempo. Tremendo, sentindo a coisa no seu queixo rastejar em direção a sua boca e esperando
o momento em que tudo desabaria, ela fechou os olhos, trocando a escuridão
forçada por uma escuridão mais contemplativa.
Não estou sozinha. A ideia era
chocante, mas verdadeira; o ar do lado de fora parecia sussurrar a presença de um espectador
daquele macabro espetáculo. Luma poderia ter se divertido com a ideia de
parecer um avestruz tentando se esconder, mas sentia-se muito mais como um
inseto preso numa teia, e só Deus sabia o quanto ela
odiava aranhas. Conheça o inimigo. Era
estranho, mas ela não pensava em pedir socorro para sua suposta companhia.
Havia uma certeza visceral de que ali estava o perigo, e não a salvação. Concentrou-se,
então, em sua silhueta imaginária, como se sem a visão tivesse alguma chance de
reconhecê-lo. Reconhecê-lo?
BAM. Soou assim o preciso chute que ela levou no estômago.
Ela poderia ter vomitado, não fosse a força de toda a terra que desmoronou
sobre sua cabeça, batendo-a com força contra a maldita estrutura. As mãos de Luma lutavam para
proteger seu rosto, mas a barreira física era implacável.
Ela passou a movimentar o rosto de forma que houvesse um
espaço de sobrevivência, e o contraste entre suas pernas histéricas imersas em
ar e seu nariz que clamava por uma chance de continuar respirando era sádico.
A terra logo alcançou seus olhos, e era nítida a sensação do pó grudando em
seus cílios. Fechá-los com força causava uma dor latejante. Em meio ao caos,
ela inspirou com excessiva expectativa, e a terra veio, implacável: não havia
nada mais a ser inspirado. Nada além de minhocas e vermes. Uma
decisão precisava ser tomada.
Escarrou e cuspiu qualquer terra que a tivesse invadido, e parou de
se mexer, todo seu corpo latejando. Prendeu a respiração.
Mesmo sabendo como era estúpida sua última esperança, Luma agarrava-se
a ideia de que seu coração poderia parar de bater logo, quem sabe antes de não
haver outra opção. O colapso era inevitável, e ela ficou ali, economizando
energia, sentindo a terra contornar suas feições e aguardar
pacientemente para adentrar seus olhos, pressionando seus lábios num beijo
violento e cruel, fundindo a aspereza e a maciez numa piada de mau gosto. Cada átomo
que despencava naquele espaço diminuto ia comprimindo, compactando,
transmutando seu crânio num bloco de lixo a ser reorganizado.
Seu coração batia com força, o vazio oprimindo seu
metabolismo. Logo ela, que sempre usava as escadas para evitar o elevador,
estava sendo parcialmente enterrada por um...
Psicopata? A identidade de seu carrasco era algo que a perturbava, e não havia
como pensar mais nisso. Havia o peso, a pressão e o tempo massacrante: era hora
de morrer.
Ela cedeu, puxando o ar inexistente, e logo a terra pôde
finalmente encontrar seu lar. Sentiu-a abrindo sua boca ao
máximo e descendo por ela, arranhando, preenchendo-a. Sua barriga se contraía
violentamente enquanto ela sufocava, querendo vomitar, sentindo que algo vivo e
viscoso se mexia a caminho do seu estômago. Engasgava, as lágrimas
de desespero misturando-se à vontade de enfiar a mão garganta abaixo e arrancar
aquilo de dentro dela, seu nariz teimosamente aspirando qualquer
coisa na débil tentativa de respirar. Não parava
de engolir a terra, afogando-se sem chance de despedida, sua garganta um cano
prestes a transbordar. Poderia ter pensado em alguma despedida,
mas estava um pouco ocupada com a tortura a que era submetida.
Do lado de fora, alguém sorria.
Quando Lola chegou em casa, deveria ter prestado mais
atenção, mas estava muito agitada.
Feliz. Pensou em alguma outra palavra, lembrando a si mesma
que a felicidade era uma ilusão; sendo essa a única que ocorreu, ela deixou
por isso mesmo. Seu plano finalmente havia sido concretizado.
Sentiu um cheiro estranho no ar, e estacou, horrorizada. Não pode
ser. Virou-se para correr, mas ele já estava na porta.
- Estava te esperando.
Lá estava o monstro: gordo, suado, fedendo a álcool - aquele
cheiro horrível impregnando o ar - e o molho de
chaves dela nas mãos. Não podia ser pior.
- Edgar, você não deveria estar aqui.
Ele riu, cambaleando na direção dela, o que fez com que
Lola involuntariamente apertasse sua bolsa contra o peito.
- Por que você insiste em me chamar assim? Eu sou seu tio,
você sabe disso, me chama de titio.
Ela encarava as mãos dele, calculando quais seriam as
chances de reaver seu prêmio, sua única chance de paz.
- Que foi, querida? Perdeu alguma coisa? - e balançou as chaves no
ar, um sorriso estúpido e sarcástico naquele rosto abobalhado. - Eu não quero
que você vá embora antes que a gente tenha a chance de conversar, você adora me
deixar falando sozinho.
Lola deu alguns passos para trás, na direção da cozinha.
Quando ele veio firmemente em sua direção, ela apressou seus passos em direção a
porta de entrada. Trancada.
- Vem aqui, vamos conversar, pra que a pressa? Aliás, você
pegou uma coisa minha. Sumiram cinquenta reais da cômoda lá do
meu quarto.
Oitenta e cinco reais, seu imbecil.
- Não sei do que você está falando.
E é claro, agora a mãe dela estava no hospital, mais um
turno. "Enfermeira nasceu pra sofrer", ela sempre dizia, com uma xícara de café fumegante entre os dedos magros, as olheiras profundas margeando os olhos escuros.
- Vem aqui, eu sei que você deve ter um bom motivo pra
roubar do titio.
Lola precisava de uma solução, e logo. Edgar - recusava-se a
pensar naquele ser humano desprezível como parte da família - acabava de por
todo o plano cuidadosamente arquitetado em risco. Haviam se mudado duas semanas
atrás para a casa dele, mas não demorou para que ela aprendesse todas as regras
daquele canalha bêbado. Acordara uma vez com o filho da puta tapando sua boca
em plena madrugada e estendendo suas garras imundas na direção dela, e entendeu bem
rápido o que ele pretendia. Ainda entorpecida pelo sono, mordeu-o e correu para
o banheiro, tendo tempo de fazer barulho e acordar a mãe, que estava em casa.
Ele havia inventado uma desculpa qualquer, e ela calou a
boca. Sabia que a mãe era uma fraca, ainda mais após a morte do marido -
pai de Lola. Doía pensar nisso. Então havia feito isso mesmo, usado o dinheiro
"dele" para trocar a fechadura do quarto que ela ocupava. Na hora
pareceu uma boa ideia completar a vingança fazendo com que Edgar fosse o
patrocinador involuntário de sua liberdade, mas agora ela via o quanto aquilo
soava idiota.
A embriaguez o tornava mais corajoso.
- Fiquei o dia inteiro na lanchonete, Edgar, estou
morta. Preciso descansar.
- Eu quero meu dinheiro de volta, sua vagabunda.
Agora ele estava irritado. A vontade de Lola era correr,
gritar e bater, mas apenas na proximidade havia uma chance de escape. Então
ficou ali, um animal esperando o abate.
Edgar parou na frente dela. Muito mais alto, analisava o
corpo pequenino da garota, os quinze anos marcados em seus traços tênues. Uma
expressão divertida o dominava.
- Você até que é jeitosinha - e colocou os dedos
engordurados no rosto dela. Distraia-o, socorro, distraia-o. - Se você
for boazinha, tudo vai ficar bem.
Agora ou nunca. Ela
sussurrou algo.
- O quê? - ele aproximou o rosto para ouvir, e aí estava a
oportunidade.
Lola deu um tapa com a maior força possível no rosto dele,
o molho de chaves tilintando ao cair.
Rápida como um gato, ela colocou-o no bolso. Saiu correndo
sem olhar pra trás, e como o apartamento era pequeno, logo avistou a porta do
seu quarto aberta, convidando-a. Mas não ia ser fácil assim.
Dois metros antes da salvação, ela sentiu-o agarrar seu
tornozelo. Sua bolsa foi arremessada, caindo em frente à cama, e
Lola caiu com força.
- SUA CACHORRA - ele gritava, histérico. Virou-a, os
joelhos sobre o quadril dela, cuspindo enquanto falava. - EU VOU TE
ENSINAR UMA LIÇÃO.
Tentou levantar sua blusa, fazendo-a gritar. O soco atingiu a bochecha
dela, o gosto de sangue espalhando-se.
- Se você ficar quietinha vai ser melhor pra você.
Como se recebendo uma ordem, Lola passou a se mexer
violentamente. Edgar rasgou sua blusa, ela procurando desesperadamente uma
forma de se defender. Era uma lutadora, sabia disso, mas a força daquele
demônio era desproporcional. Se eu
tivesse uma faca...
E então ela soube. Não tinha uma faca, mas havia outras
armas à disposição.
Pegou
o molho de chaves de seu bolso lentamente, escolhendo uma para usar como punhal
na mão de Edgar que estava apoiada no chão. A pele flácida foi atravessada e
ele se curvou para trás, urrando.
Era
sua única chance. Ainda entontecida, saiu debaixo dele, levantou-se e correu
com sua única esperança em mãos, ouvindo-o levantando com estrondo. As pernas
dele eram grandes, e ele estava com raiva.
A
blusa rasgada ficou ali, no chão do corredor, apreciando o espetáculo.
Um enorme barulho e o chão. Luma não sentiu a queda ou o
alívio da liberdade; teve apenas o impulso de rolar e expelir a terra. Cuspiu e
vomitou, sentindo como se seus órgãos fossem descolar de seu corpo, o sangue
misturado aos delicados vermes brancos que ainda se mexiam. Jazem
aqui dois pulmões, um estômago, um coração, uma alma...
Minutos eternos se passaram até que ela pudesse acreditar
que estava viva. Ainda sentia a terra dentro dela, mas o ar farto a distraía.
Quase
sorria quando esfregou os olhos. Qualquer chance de sorriso morreu, contudo,
quando ela encarou a máscara.
A trinta
centímetros de seu rosto estava sendo observada por um rosto de plástico,
cobrindo a feição de seu quase-assassino. Ela sempre fora do tipo idealista,
declaradamente contra qualquer ideia de “maldade humana”. Até os psicopatas
eram perdoáveis sob seus olhos gentis – mereciam tratamento adequado, e
entendimento das pessoas “normais”.
Naquele
momento, entretanto, queria espancá-lo. Apenas balbuciou:
- Por quê?
Por que eu?
Seu
interlocutor não se mexia, estático, e Luma sentiu um calafrio terrível quando
percebeu o que o estranho queria. Tire a
máscara. Tire a máscara.
Ela sabia
que não gostaria do que encontraria, mas sentia-se hipnotizada: precisava
acabar logo com aquilo. O medo inconfessável de já conhecê-lo ou - pior ainda, compreendê-lo - era cruel.
Estendeu
as mãos e o revelou, engasgada com um grito de horror e surpresa.
Fitou seu
próprio rosto. Pálido, bruto e satisfeito, um espelho enlouquecido, refletindo
o lado de si mesma que tentava a todo custo esconder. Todo coração tem dois lados, um claro e um escuro, cantarolou a criatura.
Luma
acordou em seu quarto com o corpo intacto e a alma aterrorizada pela horrível
ideia de alguém capaz de soterrar-se. Pior que ser monstro, pior que ser
vítima, é dividir-se nos dois papéis e continuar vivendo. Árdua tarefa, essa, de ser humana.
Enfrentara
duas noites de insônia antes de perder a luta. Esperara que a exaustão pudesse
bloquear a atividade de sua mente perturbada – tudo em vão: sentia como se houvessem
restado larvas vivas em seu estômago.
Luma
admitiu que não havia saída enquanto se levantava, observando através de um cansaço mordaz que ainda era
madrugada. Por mais que tentasse fugir, eles estariam dentro dela,
esperando para aterrorizá-la, persegui-la e fazê-la em pedaços. Não há salvação para os
fantasmas que habitam as frestas da alma; o alívio, sempre tão difícil, só vem
com o despertar.
Lola
abraçava o próprio corpo convulso, tentando acalmar-se. Num lance de sorte,
conseguira entrar em seu quarto e fechar a porta. Ainda olhava fascinada para a
chave que usara como arma, a mesma que, já entre seus dedos, trancara a porta.
Parecia ainda mais bonita, com seus novos detalhes rubros.
Gargalhou
histericamente. Sorte. Se aquilo era
sorte, que ela que não se deparasse com o azar.
Assustou-se
quando o monstro resolveu esmurrar a porta, e de repente decidiu que uma
barricada seria perfeitamente adorável: empurrou todos os móveis que conseguiu para baixo da
maçaneta.
Sempre adorara dormir. Mais que a oportunidade de repouso,
a de fuga. Furtar horas inteiras, tardes e noites atravessadas num piscar de
olhos. Sempre imaginava secretamente que este fosse o caminho mais sagrado para
a morte, o de morrer gradativamente ao fechar os olhos dia após dia. Fugir da verdadeira
escuridão, fortalecendo-se para suportar a dor rotineira.
Ouviu Edgar blasfemar atrocidades do outro lado da casa, afastando-se,
por fim. Aquilo soou como música, prévia do que ela abandonava para cair na
inconsciência.
Lola foi dormir seu sono tranquila, porque sabia que estar
dentro de si traz segurança. Não havia outro conforto em sua rotina de
esconderijos de cartas, aniquilados após um único sopro...
Ela entregou-se ao doce sono sem medo. Sabia que os
verdadeiros monstros, fatais, cruéis ou omissos estavam todos ali: do lado de
fora. Não existe escapatória para os demônios que brincam de se esconder em
esquinas mal iluminadas.
Porque quando os piores pesadelos passam a deixar marcas
verdadeiras na pele, a solução está em fechar os olhos. Quando o terror
atravessa a realidade, não há mais nada a ser feito. Sonhos são descartados:
não têm o mesmo valor. O alívio é raro, difícil.
Já ao desespero, só resta aguardar sua entrada triunfal: o despertar.