Era um daqueles típicos dias abafados nos quais o ar parece
feito de blocos de calor a serem atravessados, um a um. Mesmo a brisa marítima
– suposta cúmplice do oceano – parecia ter sido esmagada por essa força
invisível que deixa o mundo sufocado e preguiçoso.
Minha mãe estava na areia, descansando, e eu brincava no mar
com meu irmão de sete anos. Enquanto sua ocupação se resumia a jogar água em
meu rosto e sair correndo às gargalhadas, eu o observava sob o prisma de amor
ao qual as irmãs mais velhas são submetidas: a beleza de seu bronzeado
desleixado, as pernas compridas, o cabelo bagunçado, o som da risada sincera de
quem contempla a felicidade em seu viés primordial. Ele era uma pequenina obra
de arte de grande valor.
Após ser atacada diversas vezes, retribuindo de forma
mecânica, resolvi surpreendê-lo ao jogar uma concha em seu peito. Seus lábios
infantis formaram um “o” por alguns segundos, o mundo por um instante congelado
perante sua expressão genuinamente estarrecida: quando a rotação do planeta se
restabeleceu, as gargalhadas aumentaram ainda mais. Contudo, minha segunda
tentativa desajeitada acertou seu rosto, e rapidamente a graça se desvaneceu.
- Você me acertou! – os olhinhos negros me encaravam,
indignados.
- Foi sem querer...
Não tive tempo de terminar. Logo ele se encaminhava para
nossa genitora numa marcha resoluta, apenas interrompida brevemente num trecho
em que as bolachas-do-mar infestavam o solo. Encarou-me, bravo, e precisei
conter o riso ao erguer meu acusador no ar e carregá-lo por alguns metros para
que concluísse sua denúncia. Passado o local crítico, balançou-se no ar, chegou
ao chão e correu na direção de nossa mãe, as pegadas leves conduzindo-me ao
julgamento atroz.
A mãe recebeu-o de braços abertos, ouvindo num jorro o
relatório sobre a pequena tragédia. Mal sabia ele, tagarelando naquele tom
agudo de crianças resmungonas, que o juiz do caso já havia se vendido, piscando
um olho para mim.
- Foi um acidente, ela não fez de propósito, aposto que
não...
- Eu nunca mais quero ir pra praia com ela! – disse ele,
ofendidíssimo.
- Nunca mais é muito tempo, meu amor.
E eu sorri da petulância infantil, também um pouco ferida
por meu próprio ato torto. Eu sabia que ele acreditava em suas palavras:
naquele momento, sua raiva pueril afirmava com veemência a decisão. Promessa
que seria facilmente quebrada na próxima semana, ou até no dia seguinte: isso
me era perfeitamente claro. Mas não são assim as crianças, bradando do fundo
dos seus pulmões verdades a serem desfeitas em alguns segundos?
Agora, finzinho de ano, a cena voltou para me assombrar com seu
aspecto irônico: a ingenuidade foi minha. Não seriam os radicalismos e as
promessas de fim de ano apenas um sintoma do quanto nós, seres humanos –
independente de idade – não entendemos a fundo as noções de tempo e espaço?
Quantas vezes repetimos para nós mesmos a veracidade dos
“para sempre” impossíveis? Quantas vezes, entre lágrimas, não respiramos fundo
e acreditamos piamente em nossos “nunca mais”? Advérbios cheios de significado
num momento específico, e que perdem sua intensidade conforme o tempo passa e
as velhas desculpas se instalam em seus devidos lugares, justificando nossas
falhas. Alguns erros são verdadeiros vícios: aproveitam-se das fissuras de
nossas personalidades e por ela são atraídos, refugiando-se nas teorias
complexas que inventamos para permitir que eles se repitam.
2014 foi um ano decisivo em minha vida porque decidi romper
alguns ciclos intermináveis que me perseguiam, e essa foi de longe a mudança
mais radical (e mais difícil) que executei.
É necessário livrar-se dos sentimentos inúteis, em primeiro
lugar, porque só assim a franqueza tem a liberdade de repousar nos olhos sem o
ímpeto de destruição. A arrogância e a autocomiseração são meros exemplos de
uma infinidade de emoções que atuam no naufrágio cotidiano. Somos ensinados a
lamentar nossos lapsos, a ajoelhar-nos para pedir-lhes perdão, esperando a
salvação externa. A indústria da culpa move engrenagens que permitem a morte da
autocrítica e uma boa noite de sono. É difícil despir-se dos pretextos usuais -
não é fácil aceitar a carga de responsabilidade a nós delegada em cada gesto.
Contudo, fazê-lo é permitir que sejamos protagonistas da nossa própria
história. Permite um olhar demorado sobre o espelho – permite o crescimento
sincero.
2014 foi também sobre testar limites. Foi sobre chegar à
exaustão, e também sobre privar-me de comportamentos tóxicos que não me faziam
bem de verdade – e daqui cito o açúcar em demasia e pessoas não-confiáveis.
Perdi 12 kg e algumas “amizades” a partir dessa filosofia, e indubitavelmente o
esforço foi válido.
Conforme aprendi a aceitar-me, o caos mental foi sendo
amenizado, pouco a pouco. Depois de um verdadeiro apocalipse interno em busca
de respostas, descobri a doçura das perguntas certas. Aprendi que o silêncio
não muda mentes intolerantes, mas preserva minha sanidade. Aprendi que, às
vezes, as pessoas que amamos optam por chafurdar na lama da infelicidade, e que
por mais que queiramos oferecer auxílio, ele de nada vale quando a revolução
não é pessoal (e essa foi a lição mais dolorida de todas).
Aprendi, acima de tudo, que promessas longínquas e pontos de
partida genéricos de nada servem. Por isso, eu espero que você consiga lutar
por um futuro melhor mês que vem, na próxima segunda-feira, daqui a dois dias,
daqui a 20 horas. Espero que você não desista dos seus sonhos quando gente
entediada vier enumerar motivos pelos quais você não pode alcançá-los. Que você
tenha coragem de admitir seus erros, e mais coragem ainda para se perdoar. Que
tenha calma para apreciar os pequenos momentos, que no fim das contas são
aqueles que nos fazem sorrir e iluminam um dia qualquer. Que tenha sabedoria
para não gastar energia com o que não vale a pena, e que tenha amor para lidar
com toda a intolerância que nos cerca. Amor para não ser intolerante, também.
Meu 2015 será um ano pós-revolução, e não espero o melhor dele. Cansei de esperar: quero o melhor de mim. Para você, eventual leitor e silencioso amigo, meus sinceros desejos de força, coragem, calma, sabedoria e amor. Todos supracitados, todos de coração.
*
Caso alguém tenha ficado preocupado, meu irmão de sete anos me perdoou, e no próximo dia de sol
provavelmente estaremos novamente na praia, nos divertindo. É de momentos assim
que pretendo me cercar, se não para sempre - um termo vão e impreciso - pelo máximo de tempo que eu for capaz.