quinta-feira, 17 de março de 2016

Ribamar



Ribamar tinha uns olhos cheios d'água.

Não era tão simples; tinha elementos para dar errado. Mesmo assim, lá estavam meus dois amigos, gays, jogados nas poltronas da sala e dormindo o sono da cachaça. Desembaraçados, bocas abertas num meio sorriso, estavam felizes.

Na mesa da varanda estávamos eu, Ribamar e Pedro.

Ribamar era homem do nordeste, vida difícil, passara por poucas e boas. Nos contou sobre a infância seca, a fome, a mãe, o filho. E foi aí que os olhos principiaram a encher d’água, porque às vezes as coisas não saem como deveriam. Engasgado, disse que o filho se meteu com coisa errada, aquele cabra teimoso, e ele tinha tentado, sim, como pai. Mas não deu certo.

Não soubemos o ocorrido por palavras inteiras. Foram as lágrimas e as frases entrecortadas que contaram uma história de impotência, triste até não caber mais dentro de um homem, triste até escorrer pelo seu rosto duro e pingar no chão. Mas Ribamar não era amargo, porque suas lágrimas se misturavam ao álcool e ele olhava para o sobrinho, Pedro, e sorria.

O que podia dar errado estava em Pedro, e em Ribamar também. Porque a família deles era conservadora. Porque um dos rapazes que dormia a sono solto no outro cômodo era seu namorado. Porque por enquanto aquele era um segredo mal escondido, mas que pairava com seu potencial de destruição.

Ribamar tinha uns olhos cheios d'água.

Agradeceu nossa visita. Era seu aniversário e a esposa viajara para cuidar da irmã, mãe de Pedro, que acabara de fazer uma cirurgia plástica. Ia ficar só e resolveu chamar o sobrinho, traga uns amigos se quiser. E trouxe, e lá estava eu com a ressaca do dia anterior misturada a insônia de duas horas mal dormidas, única moça dentre três rapazes gays.

Não que a afetividade deles importasse, se esse fosse um mundo lógico. Mas não era, e por isso Pedro e Leonardo vieram com ombros encostados, sem as mãos nunca se encontrarem. Chegamos até a casa de Ribamar pagando um homem para nos levar; nada como transporte clandestino nas manhãs de domingo. Único detalhe era esse motorista surgido de lugar nenhum: fomos descobrir no meio do caminho – quando o velocímetro batia os cento e quarenta quilômetros por hora – que era policial aposentado à força depois de matar alguns bandidos. “Eu estava louco, um filho da puta tinha assaltado a loja da minha mãe e passado a mão nela, e eu fiquei louco e comecei a matar.” Diego no banco da frente, fingindo que nada estava acontecendo, perguntou por quanto tempo a loucura perdurou. “Dois anos”.

Pedro me olhava de esguelha, um calafrio se instalava em minha espinha e eu, ateia, só desejava com todas as forças que o homem não nos estranhasse, não batesse o carro, não achasse que moça direita não andava em companhia de três homens, não descobrisse que meus amigos se amavam e por isso precisavam morrer. Tentamos manter o tom de voz normal, e chegamos aos nossos destinos inteiros, apesar de Pedro e Leonardo sempre manterem uma distância de segurança. Os dois pela metade, então?

Agora Leonardo dormia, Diego também, e éramos nós três confabulando levezas. O peso da omissão existia, o medo subcutâneo de que Ribamar em algum momento fizesse uma pergunta, e a farsa fizesse sua entrada. Talvez acabasse a amenidade e o amor pelo sobrinho, e mais uma vez pessoas incríveis teriam seus corações partidos pela intolerância sem objetivo.

Mas Ribamar era homem de coração grande, nos contava sobre a vez em que o supervisor de sua fábrica o enviou para a Itália. Ele era o melhor, nunca tinha pegado avião na vida e não falava uma linha de italiano; não teria intérprete, peão tem que se virar. E Ribamar se virou, riu frouxamente entre as histórias que lá aconteceram e eu só podia admirar o quão sábio era aquele homem.

Sem ensino superior e dono de gestos expressivos e frases certeiras. Comentou sobre a própria família, sobre a mãe de Pedro, mulher brava, teimosa, inflexível. Disse que era ele a fazer as pontes de comunicação, e bagunçou o cabelo de Pedro dizendo que ele não era muito diferente.

Eu conhecia a mãe de Pedro de outras histórias. No fundo sabia que o filho era gay, mas não queria admitir. O sobrecarregava com discursos que apenas destilavam sua raiva e incompreensão perante um quadro que não era o que ela queria. Os dois brigavam muito, ela querendo controlá-lo à distância, intuindo que Leonardo não seria boa companhia, garoto esquisito. Leonardo era apenas o amor da vida do seu filho, seu cúmplice e melhor amigo. Não que ela soubesse. Não que ela não soubesse.

Ribamar tinha uns olhos cheios d'água.

Olhou para mim e disse que eu era boa garota, inteligente, e me cobriu de elogios sinceros que só churrasco e cachaça podem trazer à tona sem constranger nenhuma das partes. De repente, me fitou mais demoradamente, calou-se.

- Como você está, Lola?

Hesitei, fazia tempo que não ouvia aquela pergunta. Eu estava com saudades de casa. Queria encontrar um sentido para a vida além de mim mesma. Eu dormia mal, comia mal, vivia mal. Naquela época eu já havia morrido, mas o cadáver ainda brincava de pique esconde.

Ribamar não havia esquecido a pergunta, ficou bem parado, então eu disse que estava bem. Não era verdade, tampouco mentira. Comentei meias sentenças que forneciam um quadro de estabilidade e só. Sentir-se ininterruptamente perdido é uma forma de constância, afinal.

Ribamar fixou bem os olhos em mim, aqueles olhos marejados e enormes, e explicou que todo mundo doía, de vez em quando. Depois segurou a mão de Pedro, voz rouca. Disse que o amava acima de tudo, que o amava como era, e isso bastou sem maiores detalhes.

Pedro sorriu, quase a antítese de Ribamar. Criado com tudo a mão, filho único de pais abastados. Filho único de mãe juíza, estudada e homofóbica. E lá estava o homem de pedra, esculpido à força, simplório, se derretendo aos cinquenta e poucos anos e dizendo que amor era amor: seu coração sempre fora de carne.

Ribamar pediu licença, foi tirar uma soneca. Dessa vez era meu coração que estava inundado. Eu doía com um pouco mais de esperança. Doía bem.